quarta-feira, 28 de julho de 2010

O Teatro Municipal vai fazer 100 anos - Crônicas da cidade plural

Noites e manhãs no Teatro Municipal de São Paulo


Um belo dia o meu sogro por artes do então Prefeito Adhemar de Barros acordou Secretário Municipal da Cultura.
Pensei que o fato em nada modificaria minha rotineira vidinha de recém casado, trabalhador da indústria automobilística.
Ledo engano!
Provindo de plantadores de café no oeste paulista - até mesmo um município tomou o nome da família, adotando a pudica adição de um nópolis no final - ele participara, no início do século vinte, a partir de 1903, da campanha pela construção do Teatro Municipal de São Paulo e contribuíra com dinheiro próprio para ajudar a trazer da Europa, nas festas de inauguração de 1911, o barítono Titta Ruffo e outras divas de bel-canto, que se esmeraram na ópera Hamlet, de Ambroise Thomas.
E eis que, quarenta anos depois, com uma penada do Prefeito e a correspondente publicação no Diário Oficial, a Secretaria da Cultura e por extensão o Teatro Municipal de São Paulo caíram inteirinhos nas unhas!
Arregaçou as mangas e começou a trabalhar.
Enquanto isso, os funcionários do Teatro limpavam e poliam o belo camarote do Secretário da Cultura, só ultrapassado em luxo pelo camarote do lado direito, mais suntuoso, que era o do Prefeito.
Como o Adhemar foi prefeito de São Paulo entre 8 de abril de 1957 e 7 de abril de 1961, fica determinado o tempo da ação desta crônica.
Na época a cidade de São Paulo vivia raro esplendor cultural.
A Biblioteca Mario de Andrade não só recebeu este nome como também foi reformada neste período.
O teatro paulista estava no auge, com o TBC e outros cometimentos de envergadura. Grandes atores, cenógrafos, diretores, iluminadores surgiam do nada.
A quarta Bienal de São Paulo, de 1957, exibia e mostrava para os paulistanos a pintura de pingos e borrões de Jackson Pollock.
Em 1959, houve a quinta Bienal, e a ofensiva tachista.
Em 1961, já sob o comando da Fundação Bienal, houve uma retrospectiva de Alfredo Volpi, pois aumentava a participação dos brasileiros na mostra, que tinha como estrela, naquele ano, Kurt Schwitters.
Entre 1950 e 1960, o número de assentos disponíveis nos cinemas da cidade de São Paulo cresceu quarenta e dois por cento.

Enquanto isso, na Secretaria Municipal da Cultura, o endiabrado do meu sogro conseguia subvenção para realizar a temporada lírica do Teatro Municipal, uma espécie de tradição paulistana.
Pois a São Paulo da época congregava uma absurda quantidade de imigrantes europeus, desdobrados em grandes famílias binacionais, ou seja, ítalo-brasileiros, franco-brasileiros, luso-brasileiros, etcétera e tal.
A preponderante população italiana andava nostálgica da ópera napolitana, lembrando constantemente de Alessandro Scarlatte e de Joseph Haydn, que apesar da origem austríaca foi o principal compositor da escola napolitana de ópera (vinte e seis óperas que não são mais encenadas).
No início do século vinte, a sociedade paulista tinha formação patriarcal-rural, vocacionada para a cultura européia e, por extensão, à ópera.
Assim, a ópera, que justificou e impulsionou a construção do Teatro Municipal da cidade, era prioridade absoluta.
Vindo de certa batalha política entre o Estado e o Município, o Teatro Municipal foi fechado para “reformas” em 1954, deixando o Balé do Quarto Centenário sem ter onde se apresentar.
Reaberto em 1955, dois anos depois o Municipal ainda estava em obras e os recursos eram escassos.
Nada que fosse obstáculo para o afã dinâmico do novo Secretário da Cultura.
Os inimigos davam de ombros e afirmavam:
-Vassoura nova varre bem!
O novo Secretário, varrendo bem, convenceu o Prefeito a emitir títulos da divida pública e conseguiu o dinheiro necessário para concluir a reforma do Teatro Municipal.
Percebendo que o Teatro passara por reformas porque era mal cuidado e sem manutenção decente, fez o que estava ao seu alcance: criou o cargo de Encarregado Geral dos Equipamentos.
.Enquanto tratava com a Lina Bo Bardi do projeto e da construção do novo Museu de Arte de São Paulo (Embaixador Assis Chateaubriand), em cima das ruínas do velho Trianon, o Secretário Municipal da Cultura tratava da temporada lírica.
E foi aí que ele me pegou.

Anos antes, em 1955 eu namorava minha futura mulher durante as apresentações de Traviata, Aida e La Boheme, e éramos peões acomodados nas torrinhas do Teatro Municipal, porque os recursos pessoais, escassos, não permitiam poltronas mais aprazíveis.
Também freqüentávamos o Teatro de Cultura Artística, onde eu era sócio e não pagávamos nada.
O cego e genial Ruben Varga no violino, Fritz Iank no piano, destrinchando as trinta e duas sonatas de Beethoven, Andrés Segovia ao violão, mostrando como se toca...e outros iluminados, tipo Yehudi Menuhin, o violinista norte americano...
As soirées no Teatro de Cultura Artística levavam, fatalmente, ao jantar no Giggeto, nas proximidades.
Em 1958, quando nasceu o nosso primeiro filho, e já sob o domínio do sogro-Secretário, cumprindo a agenda e consultando a coleção de folders referentes ao Teatro Municipal de São Paulo, posso informar: foram sete óperas completas, pouco conhecidas, que assistíamos em silêncio, ao abrigo do camarote do Secretário Municipal da Cultura.
Em 1960 as óperas foram também sete: Miles Gloriosus - Bertoldo Acorte - La Gistizia - e, mais conhecidas, Rigoleto - Lucia de Lammermoor - La Traviata e La Boheme.
Porém não só de óperas vivia o Teatro Municipal.
Esteve por lá a Comédie Française, que fazendo juz ao apelido de Maison de Molière, apresentou uma série de obras do dramaturgo.
Assistimos também ótimas apresentações de balé.
Numa delas- talvez a do Bolshoi - pela primeira vez percebemos um certo movimento no camarote do lado, o do Prefeito, que habitualmente permanecia deserto.
Era a bailarina Marilu Torres (hoje festejada jornalista), que, ao me ver no Teatro, arregalou os lindos olhos (os quais, normalmente, só fitavam o Newton Travesso - ó ciúme miserável que me ataca de vez em quando!) e perguntou, espantada: - O que é que você está fazendo aqui?
Ela estava representando o Prefeito.
Ela tinha sido colega de classe. No Colégio Bandeirantes.
Mas o que queria mesmo era ver ao balé.

Os anos passavam e meu sogro-Secretário ia muito bem.
Eu e a minha mulher assistíamos tudo o que fosse possível assistir, sabendo que eram oportunidades raras.
Havia também algum exibicionismo e um certo gosto pela monumentalidade.
Não lembro quando, e se era um espetáculo ou a cerimônia de entrega de prêmios, ou coisa que o valha. O fato é que a praça Ramos de Azevedo foi inteiramente esvaziada e cercada por cordas. Na escadaria do Teatro, a Banda, talvez da Guarda Civil, em uniforme de gala.
Entrava-se pela calçada do Mappin, onde havia uma pequena passagem entre as cordas.
Mostramos os pergaminhos, pois assim eram os convites pessoais e intransferíveis e enveredamos por ali.
De repente, vimo-nos sós no meio da praça vazia.
Então e imediatamente a Banda atacou o Hino Nacional Brasileiro que só cessou quando entramos no Teatro.
Foi gloriosa a travessia dos cento e cinqüenta metros da praça se tanto, culminando com a deliberadamente vagarosa subidas dos degraus...exibição para a enorme platéia popular que se comprimia além das cordas...
Outro casal de convidados passou pelas cordas e a Banda atacou novamente...
Estava fazendo isso com todos os convidados que atravessavam a praça em demanda ao Municipal.


Entretanto, a agitação não acabava no fim dos espetáculos.
Muitas vezes prolongava-se noite adentro, em restaurantes, bares ou boates.
Durante as apresentações, o camarote do Secretário era invadido por atores, músicos, maestros, dançarinos, escritores, poetas, empresários... enfim por aqueles, artistas ou não, que dependiam, para viver, de subvenções municipais.
Então a reunião festiva se prolongava além do espetáculo.


Aquela “farra” cultural, que já durava vários anos, estava minando minha atividade profissional.
Afinal, morando no Brooklin, eu acordava todos os dias às cinco horas da manhã para, às seis, pegar o ônibus da empresa, que passava pela avenida Santo Amaro.
Depois, oito ou dez horas de trabalho duro.
Reservei os sábados, domingos e feriados para dormir até mais tarde.
Então, num ato de inaudita crueldade para com o genro, meu sogro-Secretário promoveu e assinou contrato com emissora de radio e televisão e certa fábrica de automóveis, criando os Concertos Matinais, que transformaram minhas manhãs de domingo, a partir de maio de mil novecentos e cinqüenta e nove, numa espécie de gincana com a finalidade de afastar todos os fatores que pudessem impedir nossa ida ao Municipal, onde o confortável camarote do Secretário esperava pela família.
E nossa ausência não era permitida.
Da primeira apresentação até a última, quatro anos depois, foram quase duzentos e cinqüenta audições dominicais, todas elas transmitidas pelas Emissoras Associadas para o Brasil e para o mundo, através do radio e da TV.
Extraordinário trabalho realizado pela Orquestra Sinfônica Municipal, o Coral Municipal, e os cantores-solistas que ajudaram a gravar o até então inédito em terras brasileiras poema-sinfônico “Colombo”, do Carlos Gomes. E também pelos maestros Armando Belardi, Camargo Guarnieri, Edoardo de Guarnieri, Souza Lima e Nelson Freire.
Terminados os Concertos Matinais, ganhei da empresa patrocinadora um álbum com três discos LP, onde estavam gravados os melhores momentos daquela iniciativa tão brilhante.


Ainda em 1957 e maestro Heitor Villa Lobos recebeu o título de cidadão paulistano.
Tivemos a honra de assistir, ao lado do compositor, no Teatro Municipal de São Paulo, a apresentação da sua Décima Sinfonia sob a regência do maestro Souza Lima.
Privilégio para os genros de sogros-Secretários!

Em 7 de abril de 1961, acabou o governo do Adhemar de Barros.
Meu sogro apanhou o chapéu e foi para casa.
Acabaram-se as delícias do camarote do Secretário, as entradas grátis no Municipal...
Dez anos depois foi a minha vez de brincar de Secretário.
Porém o ramo era outro. O único convite que recebemos, eu e minha mulher, foi para assistirmos, no Teatro Municipal, uma apresentação de orquestra de tangos que não tocava tangos.
Fomos, em memória dos velhos tempos, e também porque ninguém aceitou o repasse dos convites, mesmo de graça.
Percebemos que alguma coisa tinha sido mal avaliada, pois havia gente sentada até nos corredores.
E foi um deslumbramento.
Saímos do Teatro Municipal em êxtase, minha mulher gritando, como louca, os versos da ...“Balada para um loco”!
Então procuramos as casas de discos ainda abertas, e compramos tudo o que havia de Astor Piazzola e de Amelita Baltar.
Com uma saudade danada dos tempos do sogro-Secretário.
Que deve estar no céu, ensinando música erudita para os anjos, desconsolado por não ter sido dele a idéia de levar a Elizeth Cardoso, que vinha do quinto LP da série Meiga Elizeth, para interpretar as Bachianas Brasileiras número 5, do Heitor Villa Lobos numa soirée do Teatro Municipal de São Paulo que entrou para a história.

Na década de oitenta eu prestava consultoria para uma empresa construtora.
E, numa sexta-feira de chopes descobri que um dos engenheiros que trabalhavam para a firma, também era um dos responsáveis pela grande reforma que se faria no Teatro Municipal.
Então eu falei dos subterrâneos do Teatro, que eu havia percorrido em certa ocasião.
Na segunda feira o engenheiro estava eufórico.
Havia entrado nos corredores enterrados e o cenário despertou-lhe a criatividade.
Tempos depois me disse que um grupo de arquitetos trabalhava ali, e os subterrâneos seriam aproveitados e entregues ao público.
Confesso que não voltei ao Municipal para ver o resultado.
De qualquer maneira, o ano que vem o Teatro Municipal faz cem anos.
Parabéns para ele!
Tenho certeza que a atual reforma ficará pronta para a festa de aniversário!

Larry Coutinho ( foto e texto)

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