quinta-feira, 12 de julho de 2012

A carruagem de fogo da meia noite - Crônicas da cidade plural


            
Coração enfartado, eu curtia as delicias e as incertezas da recuperação em cama de hospital.
Em volta, as lindas gerações que andam por ai salvando o Brasil: médicos, enfermeiras, auxiliares de enfermagem, lavadeiras, faxineiras, técnicos de laboratório...
Gerações douradas, combativas, estudiosas, alegres e competentes.
Eis que no meio delas, linda menina se revelou originária do Maranhão.
Contei uma das minhas histórias e recebi de volta a aterradora narrativa sobre a lenda da Manguda, um fantasma que no final do século XIX assombrava a região onde hoje fica a praça Gonçalves Dias, em São Luís.
A aparição era figura alva como um lençol, transportando estranha luz na cabeça.
Em seguida a moça lembrou da carruagem de fogo de Ana Jensen.
Ana Jensen era rica e de presença marcante  na vida social e política  da São Luís do século XIX.
Entretanto passou à história afamada pela sua crueldade e pela forma desumana com que tratava os seus escravos.
Depois da sua morte, certas ruas de São Luís  passaram a receber, nas horas tardas das noites, a carruagem de Ana Jensen, puxada por cavalos decapitados, cujas ferraduras em ásperos choques com as pedras do pavimento produziam línguas de fogo.
Quem conduzia a carruagem era um escravo, também decapitado e com o corpo sangrando.
Suas passagens eram marcadas por sons horríveis, misturas aterradoras de choques de ferragens e de gritos e coros de lamentações dos escravos.
Os habitantes da velha São Luís fugiam com medo de serem apanhados e levados para o passado, para os tempos em que Ana Jensen reinava na sua mais horrenda crueldade.
Na ocasião eu  estava lendo alguns livros, sobre os quais tratarei mais adiante.
Porém a narrativa da linda enfermeira fez-me lembrar de outro veículo que também corria por ruas e vielas de Paris, capturando e transportando pessoas, habitantes  dos anos dois mil, para o inicio do século, por volta de 1920.
Não era uma carruagem de fogo, mas um Renault 1920, amarelo, que surgia percorrendo becos e vielas de Paris exatamente à primeira pancada da meia noite.
Ao contrário da carruagem de fogo da Ana Jensen, que ninguém filmou, este Renault foi artista de cinema e importante personagem no filme de Woody Allen chamado Meia Noite em Paris.
Assistir ao filme (deve ser deixado para o fim), ler os livros , tudo isto nos leva a profundo mergulho no alucinante mundo dos anos vinte parisienses.
Ocasião em que  James Joyce (Ulisses) e o próprio Ernest Hemingway  modificaram profundamente a literatura, que depois deles nunca mais foi a mesma.
Porém assistir o filme sem antes ler as obras indicadas não é tão bom como fazer o contrário.
A leitura previa permitirá a quem assistir o filme a pronta identificação dos personagens.
Quando, ao descer do Renault amarelo, o personagem do filme entrar em uma festa, ao som alucinante de cantor e pianista que se esmera na interpretação de Le’ts fall in love, será possível reconhecer imediatamente Cole Porter, além de alguns convivas, por exemplo, Zelda e Scott Fitzgerald.
Enquanto isso, a leitura de Shekespeare and Company  trará certa familiaridade com os Fitzgerald, o senhor e senhora Ezra Pound, Sherwood Anderson , George Moore, Walt Witmann, Jules Romains, Paul Valery e, é claro, James Joyce, uma vez que Sylvia Beach  foi a primeira pessoa com coragem suficiente para editar Ulisses, um livro proscrito e proibido por diversos países, entre os quais Estados Unidos e Inglaterra, os dois maiores mercados literários da época.



Para saber muito mais:
Allen, Woody - Meia Noite em Paris. Filme de abertura do Festival de Canes, Seleção Oficial. Dois recém casados observam profundas alterações nas suas vidas graças às estranhas experiências que vivem em Paris, onde, como se sabe muito bem, tudo pode acontecer.
Hemingway, Ernest.  Paris é uma festa. Editora Bertran. Brasil. 7a. edição, 2005. Esta obra cobre o período de 1921 a 1926, em Paris.
Beach, Sylvia . Shakespeare and Company - Uma livraria na Paris de entre-guerras. Rio de Janeiro, 2a. ed. Casa da Palavra. 2007. Fundada no início dos anos vinte, a livraria foi ponto de encontro dos principais artistas e escritores que habitavam Paris na época. Inclusive Ernest Hemingway. Entre as três fontes acima citadas existe estreita e competente ligação. Por exemplo, personagem de Meia Noite em Paris visita a livraria de Sylvia Beach e revive cenas contadas por Ernest Hemingway.
Mclain, Paula - Casados com Paris - Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2011. História de amor e traição do jovem casal Hemingway nos loucos anos de 1920. Ao contrário dos outros dois livros, é um romance.

Texto escrito entre 6 e 10 de julho de 2012, leito número 5 do Hospital Dante Pazzanese, São Paulo.

Larry Coutinho


domingo, 4 de março de 2012

Entre o mar e a fogueira - Crônicas da cidade plural

O dia 8 de março aproxima-se a passos largos.
Será mais uma justa comemoração festiva, no dia Internacional da Mulher.
Mulheres queridas, não pensem que nós homens ignoramos as crueldades, desventuras, injustiças, imposições, agressões e preconceitos aplicados contra vocês, no decorrer da história e através dos tempos.
Acompanhamos com crescente indignação, acreditem.
Porém muitas de vocês já conquistaram elevado e protegido patamar de onde podem decidir o próprio destino com alegria e firmeza.
Falta muito para conquistar, porém vejamos o que já ficou para trás.
Talvez não seja agradável relembrar, porém é sempre necessário fazê-lo para que os fatos ocorridos não aconteçam novamente.

Dois textos chamaram nossa atenção para certas ocorrências que até então ignorávamos, ou que pelo menos não correlacionávamos.
O primeiro encontra-se no livro de Laura de Mello e Sousa O Diabo e a Terra de Santa Cruz; o outro, no pretensioso porém bem feito volume de Pedro Homem de Mello sobre as Danças Portuguesas.
O que um diz nada tem a ver com o que afirma o outro.
Ligam-se somente em um momento pontual.
Laura de Mello e Souza mostra uma lista, elaborada a partir de Autos de Fé da Inquisição de Lisboa, indicando quatorze Autos de Fé instaurados contra feiticeiras, todas elas parentes de homens envolvidos na lide marítima.
Na verdade eram esposas, filhas ou viúvas de marinheiros, pilotos, mareantes ou homens-do-mar.
Pedro Homem de Mello disserta sobre a natureza das danças regionais portuguesas, já no século vinte.
Ressalta o papel dominante do homem, no sapateado e no toque de castanholas, enquanto a mulher tem o dever de mostrar-se apagada e discreta.
Trata assim, de forma geral, a dança de diversos Concelhos (Concelho, com c, como se grafa em Portugal) . No entanto, informa que no Concelho de Viana do Castelo (Alto Minho), o Carreço é uma dança para a mulher.
Dali o homem parte, muito cedo.
Não se trata mais do homem do mar, mas de pedreiro ou estucador, que passa longos períodos longe de casa.
De vez em quando regressa à aldeia.
As mulheres ficam, cuidando dos filhos, da casa, trabalhando nas hortas e pomares e como a região é de vinho, tratando das vinhas e adubando os campos com algas e sargaços que vão buscar no mar.
Então.
A dança chamada Carreço parece ter como finalidade principal a valorização dos corpos e dos movimentos femininos.
As figuras dançadas põem em relevo os dotes das mulheres.
A posição altiva da cabeça destaca-lhes o “perfil de medalha”, os braços, meio levantados, assemelham-se ao jeito de asas.
Elas são, naquele instante, soberanas, e quase conseguem voar.

Do Alto Minho, seguimos com Laura de Mello e Sousa ao país basco.
Lá, no início do século dezessete lindas mulheres bascas eram deixadas sozinhas em casa pelos maridos pescadores, verão após verão.
Para De Lancre, um temível juiz da inquisição que atuava em Labourd - setor francês da região basca - essas mulheres solitárias e atarefadas, destilavam com o olhar “perigos de amor e sortilégio”.

Desde o século nove as baleias (Balaena biscayensis), no fim dos outonos, afluíam ao Golfo da Gasconha onde permaneciam por todo o inverno.
No verão, chegavam os cachalotes.
Alguns encalhavam nas praias das enseadas onde eram retalhados pelas populações costeiras.
Porém a partir do século treze escassearam os cetáceos encalhados e os bascos começaram a procurá-los no mar.
No início os pescadores limitaram-se ao mar de Biscaia.
Dai desprenderam-se, nos séculos quinze e dezesseis, em caravelas, aventurando-se no oceano.
Sempre seguindo as baleias chegaram aos confins do Atlântico Norte: Spitzberg, um grupo de ilhas que hoje pertencem à Noruega, bem próximas ao local em que afundou no ano 2000 o submarino nuclear russo Kursk, onde era abundante a Balena Mysticetus, ou baleia do ártico; e também aos mares da Islândia e da Groenlândia. Por fim, chegaram ao Labrador. (Ver San Juan, 1565).
No ano de 1600, em apenas um porto basco, Saint-Jean-de-Luz, existiram sessenta baleeiras, grandes o suficiente para trabalhar os cetáceos em pleno mar e extrair-lhes o toucinho, ou óleo.
Cada barco era tripulado por 50 ou 60 homens.
A essa altura, 3.000 bascos ou mais se ocupavam em capturar baleias.
As instalações bascas descobertas no Labrador são inúmeras.
Por exemplo, na chamada Baía Vermelha os vestígios arqueológicos estudados indicaram que os navios e homens passaram ali longos períodos de tempo.
Mostraram não só que alguns barcos baleeiros naufragaram, mas também que esqueletos humanos repousaram para sempre no fundo das águas geladas do Ártico.

Quanto aos portugueses, lançados ao mar desde o século quatorze, houve época em que um quinto, às vezes um quarto da população estava envolvida na faina ultramarina.
Digamos, um ou dois homens por família.
As suas naus, caravelas, carracas e galeões navegavam por todos os mares.
Além dos marinheiros, milhares de outros portugueses ocupavam-se das tarefas de colonizar terras distantes.
Inteiramente abandonados em locais selvagens que deveriam desbravar.
Espalhavam-se por área geográfica imensa, das Molucas ao Brasil.

Porém a atividade principal lusitana era o comércio, por isso as carracas percorriam incessantemente a chamada Carreira das Índias e a Carreira do Brasil.
Em linhas gerais, uma entre três embarcações naufragava.
Outras se incendiavam, algumas poucas eram capturadas pelos inimigos, muitas, por não poderem mais navegar, roídas pelos gusanos, eram simplesmente abandonadas nas Índias, ou onde estivessem.

Quanto à Espanha, os registros de naufrágios de caravelas no golfo do México são impressionantes.
Igualmente passaram por maus pedaços os chamados Galeões de Manila e as frotas de veleiros que procuravam abastecer de ouro e prata os cofres da Casa de Contratación, em Sevilha, também conhecida como Casa de las Índias.
A ação inquisitorial não se limitava porém à península Ibérica.
Diz Laura de Mello e Sousa:

“ Na Bretanha, onde também abundavam marujos, suas mulheres faziam sortilégios para terem os maridos de volta: limpavam as capelas próximas às suas aldeias e jogavam o pó no ar. Com isto, esperavam ter vento favorável para o retorno dos esposos”.

Como o amigo leitor começa a perceber não estamos aqui muito preocupados com aqueles que navegavam.
Antes, interessam-nos os que ficavam em terra, aguardando notícias que nunca vinham e, em muitas ocasiões, maridos, pais e filhos que jamais retornavam, sem que nada se soubesse sobre eles.
Algumas mulheres, talvez desesperadas, depois de anos e anos sem notícias dos seus homens, recorriam às adivinhações, curas mágicas, benzeduras e bruxarias.
Colocavam-se, então, a um passo da fogueira.

Quando o poder religioso ainda confundia-se com o poder real, o Papa Gregorio nono, em 20 de abril de 1233, editou duas bulas : a bula Vox in Rama e a bula Licet ad capiendos, a qual verdadeiramente marcou o início oficial da Inquisição.
Eram dirigidos aos padres dominicanos, inquisidores.
Em 1252, o Papa Inocêncio quarto editou a bula Ad extirpanda, que institucionalizou o Tribunal da Inquisição e autorizou o uso da tortura.
O poder secular era obrigado a contribuir com a atividade do tribunal da igreja.

Pobre da infeliz que caísse nas garras de tais tribunais.
Nos processos da inquisição a denúncia era prova de culpabilidade, cabendo à acusada a prova de sua inocência.
Durante quase quatrocentos anos, inúmeros autores iluminados trataram de crimes, confissões e penas.
Em 1376 o inquisidor Nicolau Eymerich escreveu o Directorium Inquisitorum que podemos traduzir pobremente como Manual dos Inquisidores onde externou conceitos, normas processuais, termos e modelos de sentenças a serem utilizadas pelos inquisidores.
O mais famoso dentre todos os livros sobre bruxaria, o Malleus Maleficarum , que também pode ser pobremente traduzido como O Martelo das Bruxas, ou ainda Manual de Caça às Bruxas, foi escrito em 1468 por dois monges dominicanos: Heinrick Kramer e Jacobus Sprenger.
Não iremos dissertar sobre a obra; ela é facilmente encontrada nas livrarias, tendo sido reeditada em português e chegou a ser best-seller da década de 80, no século passado.

Os inquisidores e seus tribunais eram ativíssimos e entre 1450 e 1700, vinte mil pessoas foram queimadas na Europa, acusadas de feitiçaria.
Portanto não estamos tratando de perfumarias.
A verdade é que o pico de repressão à feitiçaria na Europa situou-se entre os anos 1540 e 1630, ou final do século dezesseis e início do século dezessete.
Exatamente no período das grandes navegações, quando o mundo começou a ser descoberto e desenhado em mapas.
Porém as conquistas técnicas só viriam depois.
O mar era ainda território do demônio, povoado por redemoinhos, tufões e gigante, figura que nos foi apresentada por Camões ao narrar a epopéia de Vasco da Gama: o Adamastor, além do aterrador calor solar a torrar naus e corpos além da linha do equador.

Imagine agora amiga leitora que você é uma camponesa que vive à beira do mar Tenebroso, nome aplicado pelos antigos ao oceano Atlântico.
Seu marido e dois filhos homens embarcaram em caravelas, cada um para um lado do mundo, e depois de três anos de exaustivos trabalhos de manutenção de pequena quinta e de luta pela sobrevivência nenhuma notícia chegou aos seus ouvidos.
Porém, algumas casas para lá, quase na saída do povoado, mora uma mulher que fez um pacto com o demônio e pode dar-lhe boas novas de cada um dos seus.
Ela é amiga e você é convidada para tentar fazer arribar uma das naus na baía fronteira.
Para quem não está familiarizado com o termo, arribar significa que certas condições do mar, ou do navio, obrigam o comandante a entrar em porto no qual não tencionava lançar ancoras.
É um dos seus filhos que volta!
Basta, para conseguir tal milagre, invocar o diabo marinho em suas orações:

“Grande diabo marinho, a ti entrego este pinho...”

Suas mãos tremem, amiga leitora, mas a fé e o avassalador desejo de tornar a ver pelo menos um dos filhos fazem com que você prossiga na reza, observada por duas ou três pessoas do povoado.
No dia seguinte você é presa, em virtude do pequeno ato de contrição ao demônio.
Será acusada de heresia, diante da Inquisição e duramente torturada, até dizer os nomes das pessoas que estavam presentes, e portanto cúmplices em sua tremenda falha.
Uma delas é sua filha de 13 anos e ela também será presa e torturada.
Você será mantida incomunicável; e ninguém, a não ser os agentes da Inquisição tem permissão de lhe falar; nenhum parente poderá visitá-la.
Você ficará acorrentada. Você é uma pobre mulher, sem renda mensal, que vive dos legumes e frutas da sua horta.
Não poderá custear as despesas da prisão, então não receberá alimento.
Seu julgamento será secreto e particular, e você terá de jurar nunca revelar qualquer fato a respeito dele, no improvável caso de ser solta.
Não conhecerá nenhuma das testemunhas apresentadas contra você, e não poderá apresentar nenhuma em sua defesa.
Os inquisidores afirmam que tal procedimento é necessário para proteger os informantes.
A maioria do tribunal considerou que seu crime é provável, embora não certo.
Então votou pela aplicação da tortura.
Depois da tortura ter sido decretada foi adiada na esperança de que o medo a levasse à confissão plena.
A confissão pode beneficiá-la com a absolvição de um padre para salvá-la do inferno.
Você está sujeita as penas impostas pela Inquisição, que podem ir desde simples censuras (leves ou humilhantes), passando pela reclusão carcerária (temporária ou perpétua) e trabalhos forçados nas galeras, até à sua excomunhão para que seja entregue às autoridades seculares e levada à fogueira.

Em determinado dia vestem-na de branco, uma longa camisola, e a obrigam a participar da procissão dos penitentes.
Durante o longo trajeto será açoitada duramente, até o sangue jorrar de suas costas.
Caindo, será obrigada a levantar e continuar caminhando.
Ao ser acorrentada novamente na sala de torturas, você estará suplicando pela fogueira.
Já não sabe quem é, não sente mais dores nem necessita de alimentos ou água.
Esqueceu do demônio do mar, do seu marido e dos seus filhos.
E enquanto testemunha sua subida para a fogueira, o juiz inquisidor dirá ao par:

“- Eu a condenei porque seus olhos destilam todos os perigos de amor e sortilégios! É a verdadeira tentação do demônio! Observe!”

No inicio do século dezessete houve um grande surto de feitiçaria basca.
Segundo Laura de Mello e Souza, a explicação veio do doutor Martínez Isasti, em sua Relación, que afirma:

“Graças ao seu pacto com o diabo, as feiticeiras dizem o que se passa no mar e no fim do mundo; às vezes, são verdades, e outras são mentiras. Aconteceu-lhes dizer, no dia seguinte a um acontecimento, o que se tinha passado a cem ou quinhentas léguas de distância, e a informação era verdadeira. (...) É isto que impele tantas mulheres a se tornarem feiticeiras: desejam obter notícias de seus maridos e de seus filhos, que estão nas Índias, Terra Nova ou Noruega.”

Além do incrível poder de sedução sexual inerente às bruxas, capaz de transtornar para sempre a vida do mais casto dos homens, condição naturalmente presente naquelas pobres mulheres, mães e esposas de marinheiros, elas também podiam voar, como confessou aterrorizado o próprio juiz De Lancre.

Então, vemos as lindas mulheres portuguesas do Alto Minho, com seus braços imitando asas na dança chamada Carreço.
São mulheres cujos maridos estão ausentes e dificilmente retornarão para o lar.
Elas foram forçadas a aprender a sobreviver na solidão.
Tornaram-se fortes, voadoras, no sentido metafórico do termo.
Enquanto passeiam seus perfis altivos pelos meandros da dança, iluminados pelas chamas de uma fogueira especialmente acesa para animar a festa, estão seduzindo aos poucos homens presentes.
Talvez ao prefeito ou ao pároco.
E a festa evoca o tempo em que os homens pescavam bacalhau nos mares da Noruega, ou mergulha mais profundamente no passado, lembrando os bravos marinheiros que passavam anos explorando os mares desconhecidos, e que, a exemplo dos nativos de certas ilhas dos mares do sul acreditavam, equivocados, que a magia de segurança no mar era privativa do homem.
Se na Idade Média havia demônios especializados em afundar os navios, nos séculos dezesseis e dezessete as bruxas podiam interferir nos seus percursos.


Também em terras brasileiras a Inquisição andou promovendo seus Autos de Fé.
É o tema principal do trabalho de Laura de Mello e Souza. Inúmeros sortilégios ligando a feitiçaria à navegação são narrados pela pesquisadora.
Para quem tiver interesse maior no assunto, recomendo seu livro, já citado anteriormente.
Mas não resisto à tentação de reproduzir o feito de Maria Teresa Ignácia.
Era ela a feiticeira portuguesa que atuava com o apelido de sóror Maria do Rosário.
Foi procurada por uma mulher que se queixava da ausência prolongada do marido.
A feiticeira ouviu as queixas e decidiu ajudá-la.
Juntamente com umas amigas e o demônio, foram até a Índia em figura de corvos, achando o tal homem doente numa cama.
Puseram-no numa embarcação e o trouxeram pelos ares até a casa de sua mulher, depositando-o na porta.
Feito assombroso, sem dúvida.
Ninguém poderia voar, diziam os inquisidores.
Somente Deus ou os demônios.
Ou, quem sabe, alguém que houvesse feito um pacto de sangue com Satanás.
Imagine agora, querido leitor, nossa amiga sóror Maria do Rosário, uma pobre mulher tomada por certas alucinações, acorrentada a uma roda de navalhas que lhe trespassavam as carnes, chicoteada, tendo os ossos dos dedos quebrados por pinças de ferro fundido, as unhas arrancadas e duramente interrogada por luminares da Inquisição, até confessar que realmente transformara-se em corvo e voara do Brasil em direção às Índias, em busca do marido da outra mulher.
Se confessasse, seria condenada à morrer na fogueira, e se morresse durante o interrogatório, teria igualmente queimado o seu corpo.
Se não confessasse, era certa a tortura, até fazê-lo.


Mas como poderia sóror Maria do Rosário provar que a acusação que lhe fora imputada era falsa?
A lei canônica dizia: além de Deus ou o Diabo ninguém pode locomover-se voando através do ar.
A não ser, é claro, que houvesse pactuado com o Demônio.
Ou seja, era crença da Inquisição que alguém que houvesse pactuado com o Diabo, vendendo a alma, poderia transformar-se em corvo e voar.
Ou, falseando, alguém que houvesse pactuado com o Diabo não poderia voar, nem se transformar em corvo.
Nem uma, nem outra coisa poderia ser provada empiricamente.
Talvez atirando sóror Maria do Rosário do alto de uma torre e observando para ver se ela voava ou não.
Na pior das hipóteses era uma tautologia: nem a Inquisição podia provar que ela voara, nem ela teria condições de mostrar que não voara e nem seria capaz de voar.
Por outro lado, era acusada de pactuar com o demônio, ou seja, havia vendido a alma.
Porém como poderiam as mulheres negociar as almas com o demônio, em pactos diabólicos, se Santo Agostinho provara, decididamente, que as mulheres não possuíam alma?
Por sua vez, o respeitado São Tomás de Aquino apresentara argumentos suficientes para recomendar que as mulheres fossem tratadas como escravas..

“... a mulher está submetida ao homem pela fraqueza de seu espírito e de seu corpo...”

O assunto foi levado mais longe durante o século doze:

“O homem, mas não a mulher, é feito à imagem e à semelhança de Deus. Dai resulta claramente que as mulheres devem ser submetidas a seus maridos e devem ser como escravas...”

Porém as fogueiras da Santa Inquisição, ao queimar mulheres que por ventura houvessem feito pacto com Satanás, vinha confirmar a existência da alma!
A alma que elas tinham negociado!
Ao mesmo tempo carimbavam a certeza do livre-arbítrio, que as levava a agir como agiam, afastando-as da condição de escravas do homem.
Na verdade, o âmago da questão não era esse.
Tratava de milhares de mulheres, mães, esposas, irmãs e filhas que esperavam notícias dos seus homens, maridos, pais, irmãos ou namorados que tinham embarcado em busca do desconhecido e que, anos depois, ainda não haviam dado notícia de seus paradeiros.
O mais provável é que estivessem mortos.
Ou não?
Como poderia a esposa, já desesperançada, lançar-se na aventura de um novo amor, e os havia, sem a certeza de que seu marido não emergiria das águas salgadas para reclamar o lugar que lhe cabia por direito?
Note, amigo leitor: não havia telegrama, nem radio, nem televisão, nem pombo-correio capazes de trazer notícias de lugares tão longínquos e na mais das vezes, desconhecidos.
A solidariedade feminina manifestada através dos feitiços, adivinhações e sortilégios, por mulheres sensíveis que percebiam a aflição e o desespero de suas amigas e vizinhas resultou na mais implacável e intolerante perseguição religiosa jamais intentada em todos os tempos.
Eram mulheres desamparadas, solitárias e confusas as vítimas da Inquisição, que as vendo desprotegidas de seus homens, queimavam-nas em fogueiras e acrescentavam ao patrimônio da igreja e dos inquisidores as pobres casas e terras agrestes.
A prática foi combatida pelo padre Antônio Vieira, um brasileiro que sofreu, mais tarde, duro golpe aplicado contra ele pela própria Inquisição.

É bem verdade que a tradição popular em diversas regiões da Europa atribuía, muitas vezes, às velhas senhoras que viviam sozinhas, a pecha de bruxas.
Feiticeiras, em Portugal, streghe, na Itália, sorcières, na França, e assim por diante.
Acreditava-se piamente que elas tinham por objetivo sugar o sangue das criancinhas, provocando-lhes a morte e eram dotadas de poderes estranhos, e estas crenças comuns no sobrenatural forneciam ampla base de operações para os Tribunais de Inquisição, justificando-os diante da opinião pública.
A ideologia popular da bruxaria certamente influenciou e foi influenciada por modelos aceitos pelas classes dominantes (laicas e eclesiásticas) durante a mobilização coletiva contra o “mal”, ocorrida na época da Inquisição, denominada “caça as bruxas”.

Geralmente as histórias narradas sobre as bruxas não fluem da observação direta do narrador, mas provém de uma série de episódios referentes ao âmbito familiar ou das amizades.
Assim, falava-se muito sobre o vôo noturno das bruxas, por si mesmas ou utilizando vassouras ou cavalos deixados nos estábulos como veículos para suas locomoções aéreas.
As bruxas podiam, igualmente, transformar-se em animais, durante a noite.
Outro ponto importante freqüentemente abordado era sobre a descoberta, por um membro masculino da família, que uma das mulheres, insuspeita, membro do grupo familial, era na verdade uma bruxa.
Podia muito bem ser a cunhada.
Estranha atração sexual pelas cunhadas, que por tortuosos caminhos levava os homens a denunciá-las a Santa Inquisição, imputando-lhes a pecha de feiticeiras!
Horrenda compulsão quando examinada à luz do terror demonstrado pelos grandes inquisidores diante da frase de um deles ao seu par:

“- Eu a condenei porque seus olhos destilam todos os perigos de amor e sortilégios! É a verdadeira tentação do demônio! Observe!”

Por outro lado, durante os séculos focalizados, era grande a mortalidade infantil provocada certamente por causas naturais, como a desnutrição decorrente da fome e da miséria imperante.
Entretanto aceitar a causa da morte como natural em razão dos pais serem incapazes de melhorar as condições de vida da família, era dar um golpe no sistema de segurança psicológica da comunidade.
Era mais confortável para as mentes culpadas aceitar o horizonte mágico no qual achava-se inserida a crença na bruxaria, procedimento que certamente permitia ao indivíduo subtrair-se às crises psicológicas e morais decorrentes dos prematuros falecimentos.
Procurava-se, sempre, no pequenino cadáver, mostras ou sinais de vampirismo.
E o procedimento alimentava e se justificava cada vez mais nas crenças em tais criaturas malignas.
Aceita a realidade da bruxa, aceitava-se igualmente o feitiço, o mau-olhado, o encantamento.
Crenças mágicas e religiosas que ainda nos dias de hoje, dominados pelo racionalismo, continuam a manifestar notável vitalidade e um profundo enraizamento.
Entre tantas outras privações, colocá-las ao alcance da Inquisição punitiva foi o legado que o marinheiro deixou para sua família, enquanto em toscas embarcações enfrentava a fúria de Bóreas e abria para os países que mantinham frotas desbravadoras o caminho para imensas fortunas em ouro, prata e novas terras.
Entretanto o furor inquisitório voltava-se, inegavelmente, contra os judeus e os hereges.
Em Portugal ficou célebre a fogueira que queimou o dramaturgo Antônio José da Silva, o judeu.
A Inquisição do século XVI derivou dos tribunais religiosos estabelecidos em certos países que durante a Idade Média perseguiam e condenavam os hereges..
O concílio de Verona (1183) estabeleceu as bases da Inquisição ao ordenar aos bispos lombardos a entrega à justiça dos heréticos que recusassem conversão.
Tornou-se instituição poderosa na Itália, Espanha e em Portugal.
O caso mais grave de desrespeito aos direitos humanos deu-se em Veneza, quando o Tribunal Eclesiástico da Inquisição transformou-se em Tribunal da Inquisição de Estado, composto por
três membros que tinham direito de vida e de morte sobre qualquer cidadão.

Saindo desse período sombrio, iremos comemorar, em 8 de março, as conquistas femininas já alcançadas, e almejar novas e alentadas realizações daqui para frente.

Larry Coutinho

Referências para saber mais: 1. Souza, Laura de Mello e - O Diabo e a Terra de Santa Cruz - Ed. Companhia das Letras 1966. 2. Mello, Pedro Homem de - Danças Portuguesas. Ed. Lello & Irmão - Porto -1962. 3. Kramer, Heinrick e Sprenger, Jaconus - Malleus Maleficarum (Manual de Caça às Bruxas) Ed. Planeta - dezembro de 1976 - São Paulo. 4. Skocic, Veridiana Aderaldo - Cultura popular e práticas mágicas - O exemplo da Itália. UFRJ.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O mistério das moedas dobradas - Crônicas da cidade plural



Sobre insignificâncias lucrativas

Depois da briga no Pelourinho, Ernesto Anglicano experimentou a cadeia baiana.
Um inferno superlotado.
Entretanto conseguiu fazer amizade com certo preto velho que ao ser conduzido para uma prosa maluca sobre a vida secreta dos objetos, não só compreendeu Ernesto, como também lhe falou sobre as moedas dobradas do Pelourinho.
-Estão, todas elas, num buraco do muro da igreja de São Francisco. Naquela mata que fica atrás da igreja. Dá pra ver a cavidade pela janela da sacristia...
-Como foram parar lá?
-Dádivas dos peregrinos! As moedas eram dobradas e perdiam o valor de compra. Embora fosse crime de lesa-majestade danificar o dinheiro. As moedas que estão guardadas naquela cavidade e em outros lugares da Bahia são de prata, cobre e até mesmo de ouro ... perderam o valor como moedas, porém restou o valor do metal...
Ernesto Anglicano tinha conhecimento do costume medieval de sacrificar moedas para oferecê-las aos Santos, aos Anjos ou ao Espírito Santo, corrente na antiga Inglaterra.
Ele mesmo havia encontrado moedas de prata dobradas, na torre de Glastonbury e sabia que centenas delas tinham sido retiradas de riachos e poços sagrados.
Então lembrou que na sua juventude costumava colocar moedas nos trilhos dos bondes que subiam a rua Pamplona, em São Paulo.
Depois da passagem do pesado veículo, o grande desafio era o de encontrar as moedas dobradas, que às vezes saltavam para longe e costumavam desaparecer por entre as frinchas dos paralelepípedos.
Um inglês que havia comprado um lugar para sentar no chão da cela resolveu meter o bedelho na conversa.
O preto velho aproveitou para perguntar:
- Porque você foi preso, compadre?
- Alguém colocou alguma porcaria na minha bagagem de mão. Fui preso antes mesmo de subir no avião. Como você sabe, sou inocente.
- Aqui nesta cela não tem ninguém culpado! Arrematou Ernesto Anglicano, farejando proveitosa revelação.
- Na Inglaterra, mais precisamente em Yorkshire, onde se fabricava manteiga, as operárias dos laticínios costumavam manter uma moeda dobrada à mão, para o caso do creme obstinar-se em não virar manteiga. As moedas dobradas eram conhecidas como “talismãs da nata”. Também a literatura elisabetana está repleta de moedas dobradas, oferecidas às senhoras como prova de amor. Eram as famosas “moedas de quatro pences curvadas”.
- Não sei porque, quando eu penso em um tesouro, penso em moedas - lembrou Ernesto Anglicano - não consigo imaginar uma arca de piratas repleta com papel moeda!
- É verdade - lembrou o inglês - as moedas possuem uma espécie de sortilégio... Talvez devido ao metal em que são cunhadas...
- Hoje, aço inoxidável, bronze, latão ou alumínio - disse o negro velho - não valem muito!
- Porém, no passado, eram de ouro, prata ou cobre - acrescentou Ernesto Anglicano.
-As moedas de cobre, de quarenta réis, eram usadas na Bahia para tocar o berimbau - hoje desapareceram... esclareceu o preto velho, sem ser perguntado.
- Na Grécia antiga a alma de quem morria precisava atravessar o rio Estige para conseguir a paz no mundo inferior. Só havia um jeito: utilizar os serviços do barqueiro Caronte. Que cobrava a passagem em dinheiro corrente. Assim eram colocadas moedas na boca e nos olhos dos mortos... - o inglês revelava certa erudição.
-Você conhece bastante sobre moedas! Admirou-se Ernesto Anglicano.
- É que vivi delas por certo tempo - explicou o inglês - assim como ganhei muito dinheiro com o chamado “ouro velho”!
- O ouro envelhece? Perguntou o preto velho.
-Só na cabeça das mulheres - e o inglês riu.
- Como é que você ganhou dinheiro com moedas?
- Moedas tortas, perfuradas, desfiguradas ou com danos de qualquer natureza parecem ter perdido o valor de compra. Eu as trocava e pagava um centavo por qualquer uma delas. Depois as levava a um Banco. Ao recolher as moedas, o Banco fornecia um recibo. Depois de examinadas pelo Banco Central, as moedas danificadas eram destruídas e eu recebia o ressarcimento ... quase sempre pelo valor real das moedas! Algum tempo depois, eu percebi a fascinação que as moedas revelam pelas fontes, poços, cavidades inundadas...
- Por exemplo, a Fontana de Trevi? Ernesto Anglicano tentou adivinhar.
-Exatamente. Por alguma obscura razão as moedas levam os seres humanos a atirá-las nesses locais. São oferendas votivas. A prática pode datar à Idade de Bronze, quando certa deterioração climática fez com que os deuses do céu e da terra fossem substituídos por divindades aquáticas...
-Iemanjá! Exclamou o velho - nas viradas dos anos os baianos atiram quantidades assombrosas de moedas nas águas do mar, oferendas à rainha das águas, Dandalunda...
- Houve época, em Ubatuba, que eu fazia o mesmo - lembrou Ernesto Anglicano - certa passagem de ano, precisando de sorte, atirei nas ondas quantidade absurda de moedas...
-E deu certo? Interessou-se o inglês.
- Não. E no ano seguinte voltei, procurando recuperar algumas das moedas atiradas, em vão...
- Ouça - prosseguiu o inglês, eu estava em Londres quando a a velha Ponte de Londres era desmontada para ser levada para o Arizona. Então descobri que o leito do rio Tamisa, sob a ponte, estava atulhado por moedas imperiais. Consegui apossar-me de uma centena delas e as vendi, lentamente, em leilões de antiguidades. Com o resultado obtido consegui viver confortavelmente durante cinco ou seis anos. Também consegui vinte moedas com a efígie de Antonino Pio, do século dois, ano do Senhor, retiradas do poço celta dedicado à ninfa Coventina...de posse dessas informações e conhecimentos, quando cheguei ao Brasil, instalei alguns poços dos desejos em diversos shoppings centers. Consegui viver da coleta das moedas, até que fui denunciado por funcionários que desejavam o botim para eles. Depois houve aquela inflação galopante. O dinheiro que na véspera podia comprar, por exemplo, uma bicicleta nova, no dia seguinte mal dava para um maço de cigarros... uma moeda de cinqüenta centavos valia menos do que o seu peso em metal...troquei papel moeda por moedas pelo insignificante valor nominal, arranjei maquina que as furava no centro e passei a vender as moedas pelo dobro do valor, como arruelas para oficinas mecânicas ... Finalmente apareceu aquela porcaria na minha mala de mão e aqui estou eu...
-Ernesto Anglicano! - chamou o carcereiro.
Antes de atender ao chamado, Ernesto Anglicano passou um cartão de visitas ao inglês.
-Procure-me, quando sair daqui. Quero saber porque as pessoas dobram as moedas...e como, pois não é fácil dobrá-las!

(Trecho retirado do conto A Associação, in Ciprestes, casuarinas e riachos, de Coutinho, Larry)

Larry Coutinho

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Ministros, da corrupção, dos delitos e das penas - Crônicas da cidade plural

- A palavra corrupção - ensinou o professor Benjamim Silvano - do substantivo latim corruptione, é uma espécie de palavra-ônibus, que carrega em seu interior boa quantidade de significados diversos. Pode ser decomposição, putrefação, devassidão, depravação, perversão, e suborno ou peita, quando aplicada no sentido de ato ou efeito de corromper...
Giselda Monti interrompeu a brilhante dissertação:
- Mas o que significa corromper, professor?
- Quanto à palavra corromper - do latim corrompere - tratando-se de verbo, seus sinônimos sempre pedem um agente, humano ou natural, homem ou calor, por exemplo. O calor corrompe certos alimentos: torna podre, estraga, decompõe, o ser humano corrompe seu semelhante indiretamente, através de artifícios como alterar, adulterar, ou diretamente, quando perverte, deprava, vicia, suborna, peita, ou compra. O fato parece desconhecido dos moralistas, pois opondo-se à pessoa que compra, está a pessoa que vende. E vice-versa.
A douta observação partiu, naturalmente, do professor Benjamim Silvano.
Nossa modesta crônica não vai além da sala de aula nem dessas duas ações, comprar e vender.
Engana-se quem quiser atribuir outra intenção qualquer.
Tratam-se de pequenos jogos, bastante praticados desde que o mundo é mundo.
Sendo advertência razoável, íamos seguir escutando o brilhante professor, quando Giselda Monti voltou à carga:
- No universo da venda e da compra, como surgiu a palavra camelô?
- Parece que originou-se do francês camelot... - seguia a explicar o professor, quando o cearense Severino resolveu complicar:
- Diabos! Em francês a palavra serve para designar um certo tipo de tecido - conhecido também em português por camaleão - e o camaleão é animal propriamente dito, cuja lenda pessoal afirma poder assumir as cores das superfícies por onde anda, permanecendo quase invisível, graças ao fenômeno chamado mimetismo. Camelô, outrora, tratava-se de mercador ambulante, que vendia nas ruas, em geral nas calçadas e praças, bugigangas e quinquilharias, apregoando-as de modo característico, típico e pitoresco...
O professor Silvano resolveu prosseguir dali mesmo:
- Quando o indivíduo era vendedor de mercadorias ordinárias - no sentido da má qualidade - os franceses utilizavam o substantivo camalotier. Transpondo a palavra para a exigência de agente, ela era transformada em verbo, a indicar ação, e a expressão era camaloter, que significava, freqüentemente, fabricar mercadorias ordinárias...
O paranaense Telmo resolveu entrar nas explicações:
- Não sei quando a palavra camelô invadiu as nossas ensolaradas praças. Minha avózinha querida os chamava de bufarinheiros. E assim, de repente, sobem-me à cabeça certas recordações da infância, friorenta e sossegada, nos arrabaldes de Curitiba...
O professor Benjamim Silvano examinava as próprias unhas da mão esquerda aparentemente enlevado, voando sustentado pelos dois assuntos que o preocupam como se fossem tapetes mágicos.
Telmo aproveitou para resvalar de rumo e dissertar por onde lhe convinha.
Ei-lo em Curitiba, final dos anos trinta.
Segundo ele o polaco da lenha entregava achas e troncos praticamente todos os dias, pois o grande fogão de oito bocas que aformoseava a enorme cozinha era devorador guloso da madeira seca.
Padeiro e leiteiro surgiam diariamente, madrugada ainda.
O verdureiro, que abastecia a casa com verduras, legumes e frutas aparecia uma vez por semana.
Outros vendedores ambulantes surgiam e desapareciam aleatoriamente. Eram velhos que tangiam cabras e ofereciam leite fresco tirado na hora, que era bebido temperado com açúcar e canela; judeus envelhecidos prematuramente - a primeira guerra mundial mal terminara - que compravam e vendiam roupa usada, e gritavam o pregão: - Comp’a’ropa! além de pipoqueiros, sorveteiros, vendedores de carvão, de redes nordestinas batidas em tear manual, esses últimos vendedores eram raros, porque não conseguiam suportar os meses frios de Curitiba, e Telmo pretendia seguir com todo o elenco, extravagante e curioso para os dias em que estamos tentando sobreviver, repletos de tecnologia e invenções estonteantes.
- Os bufarinheiros eram especialistas em acender desejos secretos - interrompeu Severino, tentando compreender se houvera alguma intenção ofensiva nas palavras de Telmo - eles eram mestres em criar compulsões de compra e lidavam com a imponderável curiosidade, na minha modesta opinião, a mais sedutora das fraquezas femininas, o sentimento que as faz, desde assistir novelas na televisão até trair o marido com o melhor amigo dele. Dizem que é paixão, amor, desejo, porém discordo do que dizem: é somente curiosidade...
- Que é que tem? reclamou Gisela Monti - como toda mulher, eu também gosto de comparar...
Severino lançou um olhar de desprezo e prosseguiu:
- Pois bem, os bufarinheiros carregavam uma caixa de pinho, chata e quadrada, e dela tiravam, como em passes de mágica, agulhas de bordar ou de tricotar, dedais, linhas coloridas, esbeltas ou grossas, lenços finos de cambraia e enormes lenços de seda para amarrar à cabeça, enfeitando com seus desenhos múltiplos e coloridos, coleções de sabonetes, com diversos formatos e inúmeros aromas diferentes... era um universo de quinquilharias e de bugigangas que o astuto vendedor ambulante fazia surgir das entranhas daquela caixa mágica, cheia de mistérios maravilhosos...
Telmo, aborrecido com a intervenção, sussurrou para Giselda Monte, alto o suficiente para ser ouvido por todos:
- Esse cearense, para mim, é veado ...escute só: caixa mágica cheia de mistérios maravilhosos...- imitou o colega, que se calou, vermelho de indignação.
Giselda Monti sorriu e concordou prontamente.
Manoel, quase sempre calado, sentiu pruridos de conferencista e desabou:
- A avó da minha mulher, tripeira da cidade do Porto, os chamava de adeleiros. Impropriamente, segundo a minha outra avó, a brasileira. Para ela, adeleiro era aquele comerciante que só comprava e vendia trastes usados. Também respondia pela denominação de bufarinheiro, porém era mais propriamente designado como adelo, merca-tudo, ferro velho, bricabraquista, roupavelheiro, zângano... se bem que zângano, termo derivado do espanhol zángano, utilizado também como sinônimo de adeleiro, na verdade expressava certa tendência explicita para a desonestidade. Não era vendedor de gatos por lebre, como o adelo, tratava-se, isto sim, de parasita, fraudulento e agiota desonesto. Agia como agente de negócios particulares, ou preposto de corretores. Dele derivou o termo zangão, tão utilizado injustamente em certas bolsas de valores oficiais... porém em Portugal, o termo adeleiro significa o mesmo...
- Como o mesmo? - irritou-se Severino.
- Bem, o mesmo ...veado, paneleiro, adamado, adeleiro...
- Ó Manoel, acho que...
Vendo o lado para onde caminhava o andor o professor Benjamim Silvano habilmente trocou de assunto:
- Na minha infância, cheguei a negociar com compradores de jornais já lidos, garrafas e ferro velho. Quando transferimo-nos para São Paulo - na época eu não mudava sozinho para lugar algum, daí o plural - soube que tais negociantes eram conhecidos como garrafeiros. Ainda hoje infernizam a cidade com suas enormes carroças, nas quais as bestas e os cavalos foram substituídos por homens e mulheres, alguns deles e algumas delas nordestinos em busca de melhores oportunidades na vida ...
- A aula, hoje, está de amargar... - queixou-se Severino.
- ...melhor para eles seria se permanecessem no único deserto habitado do mundo, a ingerir sopa de palma, na hipótese da existência de líquido para diluir o caldo, prosseguiu, inocentemente, o professor Silvano - não vai aqui nenhuma sugestão racista: trata-se de sensato conselho de quem já viveu e percebeu a dureza da vida nas ruas da capital paulista...
Pela primeira vez atuando com sensatez, Giselda Monti tentou reconduzir o debate:
- E sobre os Ministros, quando falaremos?
- Já estamos! exclamou o Manoel.
- Não! Estamos falando de compra e venda!
- Pois não é o mesmo? O rude bom senso de Manoel revelou-se novamente.
Até então calado, o Aurélio Antônio de Albuquerque e Souza resolveu meter a colher:
- Olha aqui, gente. Não sei como vocês conseguem viver as suas vidinhas medíocres sem casa em Angra dos Reis. Nossa família tem uma em Angra e outra no porto Bracuy. Ambas com píer voltado para o canal. onde podemos ancorar os veleiros e as lanchas...
- Oh! Aurélio Antônio! Não venha tripudiar sobre a nossa miséria endêmica - exclamou o Severino, ofendido por não possuir casas em Angra - estamos falando de Ministros...
- Pois é - retrucou o Aurélio Antônio - Ministros! As casas em Angra foram compradas pelo meu bisavô, quando foi Ministro do Jango...
- Chega! berrou o professor Silvano.
Sem dar importância ao destempero do professor, o cearense Severino insistiu no assunto.
- Olhem aqui! Um homem passa toda a vida na mediocridade financeira, ganhando alguns salários-mínimos por ano! De repente, notabilizado pela política, ei-lo Ministro! O pobre homem, que vendia rapaduras, imediatamente toma posse e vai conferir o que poderá vender...
- Só porque sete ou oito Ministros andaram vendendo o que não deviam... ia atalhar a Giselda Monti, quando foi interrompida pela campainha a indicar o fim da aula.
Escondendo os seios fartos Giselda abotoou a blusa e para decepção dos homens presentes juntou seus livros e desapareceu no corredor, deixando no ar um aromazinho safado de almíscar selvagem.

Larry Coutinho

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Iemanjá nas Santerias e nos Candomblés - Crônicas da cidade plural.



Aproxima-se o dia 2 de fevereiro, a passos largos.
Na Bahia é o dia reservado pelos baianos para cultuar Iemanjá.
Ando escrevendo sobre a música cubana e noto que existe surpreendente afinidade entre certas áreas do Brasil e as ilhas de Cuba.
Muitas pessoas encontraram grande semelhança entre a Malecón, em Havana, e o Pelourinho, em Salvador.
Ainda mais sabendo que tanto a Bahia quanto Cuba foram colonizadas quase que da mesma maneira.
Escravos africanos provindos da mesma região da África cultivando fumo e cana de açúcar.
Os charutos cubanos (exemplo: Monte Cristo) são famosos, mas os da Bahia também são (exemplo: Alonzo Menezes).
No tempo de colônia, ambos os países viveram o ciclo econômico do açúcar.
A Santería cubana assemelha-se ao Candomblé baiano, religiões populares que adoram os mesmos orixás.
No que diz respeito à adoração aos mesmos orixás pelos baianos e cubanos, transcrevemos aqui uma rumba cubana, em décimas, uma espinela modificada (veja o meu livro A Arte da Décima e da Viola) recolhida em Havana por David Millán Rodrígues, em 1996.
Trata-se de uma canção notável pela abordagem aos motivos religiosos afro-cubanos.

“ Dicen que la Santería
Está de moda en la Habana.
Por eso a mi me engalana
A ver esa señorona
Con esa linda mantona
Toda vestida de blanco
Que me cubra con su manto
Por qué no decirlo así
Que todos recen por mi
Al pie de todos los santos.

Muchas veces desesperado
Yo le rezo a Yemayá,
Olofín, Obbatalá
Y a la Caridad del Cobre (Oshún)
Que pongan su manto noble
En manos de un iyawó
A ver si así cambio yo
De la manera en que vivo
No lo tiren al olvido
Se lo ruego por Changó”.

Amigos Iorubás baianos, eis aí: Iemanjá, Olofin, Obbatalá, Oxum e Xangô.
Chega, ou querem mais?

Para aqueles que não se identificam com os Iorubás, cultura africana sudanesa, também chamada pelos franceses de Nagô à qual somam-se os Gegê (ou Jeje), Mina e Fanti-Ashanti, devemos informar que a tradição popular conseguiu o milagre de sobrepor religiões, a professada pela igreja católica romana colocada sobre a mitologia complexa e cheia de deuses principais e intermediários, sacerdotes e sacerdotisas do culto africano.
Creta, uma ilha do Mediterrâneo, era dividida em várias cidades-estado independentes, que viviam às turras entre si, mas diante de um adversário comum, aliaram-se, e essa reunião de desiguais foi chamada pelos gregos de sygkretismós (sincretismo).
Alguns estudiosos de assuntos sociais contemporâneos passaram a aplicar o termo sempre que conseguiam diagnosticar situações em que houvesse fusão de elementos culturais diferentes em um só elemento, continuando perceptíveis alguns sinais originários.
Assim, tornou-se lugar comum designar como sincretismo religioso esta fusão, ou confusão de elementos religiosos que aconteceu na Bahia, em terras brasílicas, e como estamos vendo, também em Cuba.
O que tem sido pouco explorado pelos estudiosos é uma outra espécie de sincretismo, o musical, responsável pela criação de inúmeros gêneros latino-americanos, sobre os quais estamos constantemente dissertando, nos quais houve a superposição de versos, melodias e harmonias de origem européia sobre o polirítmo africano provindo de instrumentos de percussão das mais variadas formas e procedências.
Edoard Vodissich é um europeu de ascendência austríaca e suíça, mas que se encantou com o Brasil e aqui fixou residência, em 1953.
Pois bem, partindo dos elementos essenciais da cultura africana e estudando seu transplante para as Américas, tratou do longo processo de aculturação sofrida por ela em novos solos.
Eis aí: a música africana ao entrar em contato direto com os europeus e índios, proporcionou o que ele chamou de sincretismo musical, não alheio até o próprio jazz.
Vale a pena uma leitura demorada da sua obra, principalmente do livro “Sincretismos da Música Afro-Americana”.
Estão focalizados naquele volume, entre outros igualmente importantes, os seguintes gêneros musicais: spirituals, blues, rag-time, jazz, rumba, calypso, choros, samba, frevo, maracatu e bossa nova.

Enquanto o confortável táxi nos leva pelas ruas da cidade de São Salvador, o Nunes, maravilhosa mistura de motorista e intelectual fala sobre o Candomblé baiano:
- Em termos religiosos e graças ao sincretismo, santos ou deuses africanos são reverenciados nas imagens e estampas dos santos católicos e quase sempre a estes identificados. Parece que a idéia não provém dos africanos, mas dos indígenas do Caribe...
- Qual é a relação, Nunes? Estou curioso!
Nunes faz sinal com a mão, pede-me que espere enquanto fala no telefone celular.
Negocia uma corrida de táxi para o final do dia.
Depois prossegue:
- O importante é ler a obra do frei Bartolomeu de Las Casas. Bartolomeu de Las Casas foi um padre dominicano espanhol, e escreveu “La História de Las Índias” entre 1527 e 1564, deixando a obra inacabada por ocasião de sua morte, em 1564. É verdade que produziu outras obras - “Brevíssima Relação de Destruição das Índias” - e muitos escritos em latim. A “Brevíssima Relação’ narra com impressionantes detalhes, ilha por ilha no mar do Caribe, e também região por região, na terra firme, como os conquistadores espanhóis fizeram para aniquilar os milhões de índios que habitavam a América Espanhola...
Nunes descuida-se com a direção do automóvel e quase atropela uma garota que atravessa a rua sem olhar
Depois dos gritos, da indignação, dos comentários maldosos, Nunes sossega e continua com a história:
- Desde logo Las Casas compreendeu que os índios não tinham condições nem físicas nem culturais para executar os pesados trabalhos que os espanhóis haviam reservado para eles. Solicitou e obteve autorização dos reis da Espanha para levar negros africanos para a América Espanhola, com a finalidade de colocá-los para trabalhar nas minas (mercúrio, ouro, prata, e mais recentemente, o níquel). E assim, com a chegada dos escravos, começou a povoação negra da ilha de Hispaniola...
- Eu li a “Brevíssima Relação de Destruição das Índias”- informo - Las Casas traçou o perfil de indígenas pacíficos, obedientes e desenganados...
- Não! discorda o Nunes - na realidade, os índios não eram assim! Havia uma relação de guerra entre espanhóis e indígenas, comportando combatentes de um e do outro lado. E foi a guerra que patrocinou a destruição dos índios e o assassinato recíproco. Os índios resistiram, tanto de forma explicita através dos combates, quanto de forma implícita, como por exemplo, provocando o rompimento das comunicações verbais. Os índios se calaram, e este foi o primeiro sinal de resistência. Em 1503, a rainha Isabel ordenou ao governador da Espanha que obrigasse os índios a falar...
- Como é que os espanhóis fizeram para obrigar os indígenas a falar? Pergunto, sinceramente curioso.
- Não sei - confessa o Nunes. O silêncio indígena conteve o discurso espanhol de manipulação ideológica, que só podia ter efeito e significado quando referido ao discurso indígena. As falas dos índios, quando obrigadas, eram sempre metafóricas e de sentido figurado, e isso confundiu os conquistadores. Dai, talvez, a sugestão de Las Casas à coroa espanhola, de substituir escravos índios por negros. E agora vem o que nos interessa. Junto com o silêncio, os indígenas aproveitaram para ocultar e manter viva sua história, que na aparência havia morrido. Simulando aceitar a religião cristã, os indígenas construíam altares para agradar aos padres, porém atrás da imagem do Cristo estavam ocultos nas paredes os ídolos pagãos...
- Assim como os africanos aceitaram Nossa Senhora e diversos santos católicos para encobrir seus verdadeiros deuses...
- Sim. Como resultado do comportamento indígena, o silêncio e a simulação dificultaram o entendimento da sua cultura! Por sua vez os sacerdotes cristãos destruíram monumentos, pinturas e códices índios e assim sepultaram para sempre as raízes da cultura indígena, e o fizeram por conta própria, na defesa das suas crenças católicas. Agora, quando eles ajudaram a destruir os indígenas, o fizeram por conta da coroa espanhola.

No final da tarde o Nunes colocou o automóvel a transitar pela avenida Vasco da Gama, percorrendo as margens do dique do Tororó.
O dique é um lago artificial criado no século XVIII e substituiu um outro, anterior e construído por escravos e holandeses com pás e picareta, no século XVII.
O dique do Tororó, logo depois da inauguração, serviu para o abastecimento doméstico de água fresca.
Dai a velha canção baiana:

“Eu fui no Tororó buscar água, não achei
Achei bela morena, que no Tororó deixei(...)”

Soberbas no meio do lago, as estátuas do escultor Tati Moreno retratando oito orixás postados em círculo.
No centro, um repuxo aspergindo água para o céu.
- Aqui é a morada de Oxum - o orixá da água doce, dos lagos e das fontes. E hoje, como é sábado, é dia de Iemanjá e de Oxum. Informou o Nunes, sempre preciso nos esclarecimentos.
Por intermédio do Nunes eu soube que os orixás mais populares na Bahia são:
Oxalá - identificado ao Senhor do Bonfim, Sagrado Coração de Jesus, Divino Espirito Santo, Jesus Cristo e assim por diante;
Xangô (Changó, na espinela cubana) - orixá dos raios e das tempestades, identificado a Santa Bárbara, São João e São Jerônimo;
Yansã - mulher de Xangô, com as mesmas prerrogativas deste e também com a função de guardar as almas dos mortos. É reconhecido como marido, quando Xangô identificar-se com Santa Bárbara. Complicado, não é mesmo?;
Cantei para o Nunes a rumba cubana e ele estranhou:
- Quem é Caridad de El Cobre?
Eu explico:
- Caridad de El Cobre, ou Oshún para os cubanos, é Oxún dos baianos. A segunda mulher de Xangô, Oxun, como você mesmo explicou, é orixá das águas doces, rios, lagos e fontes, e a rainha do rio, do amor, da feminilidade, símbolo da coqueteria, da graça e da sexualidade femininas. Suas cores são o amarelo e o amarelo-ambar. Assiste a gestantes e parturientes, e se identifica com várias Nossas Senhoras: Candeias, Conceição, Aparecida, e em Cuba com a Virgem da Caridad de El Cobre. El Cobre é uma pequena cidade que fica a 15 quilômetros a oeste de Santiago de Cuba. Lá está o Santuário Nacional da Virgem de Caridade, em 1916 declarada padroeira de Cuba pelo Vaticano. Foi coroada pelo Papa João Paulo II, durante sua visita a Cuba.
- Entendo. As diversas Nossas Senhoras sempre encontram correspondência em várias figuras do Candomblé. Por exemplo, Iemanjá (Yemayá na espinela, como é tratada nas Santerias cubanas) - orixá das águas do mar, mãe de Ogum, Oxossi e Xangô, e de todos os outros orixás, identificada com as Nossas Senhoras do Carmo, Rosário, Conceição, Virgem Maria. Seu nome, em iorubá é “Yeyé omo ejá” e significa Mãe dos Peixes. E é por isso mesmo que na Bahia, no dia 2 de fevereiro, assistimos enorme quantidade de barcos de todos os tipos e milhares de pessoas acotovelando-se na beira das praias, buscando lugar nesta ou naquela embarcação para, no mar alto, depositar sua braçada de flores, seu perfume, seu espelho, seu pente, enfim, sua dádiva para a Princesa de Aioká, Dandalunda, Inaê, Janaína, a Rainha do Mar. Vaidosa, Iemanjá, gosta de objetos de adorno como oferenda: jóias, perfumes, espelho, pó de arroz, talco, batom, flores....
- Eu ouvi dizer que Iemanjá não é a Rainha do Mar... provoco o Nunes e a resposta vem, célere.
- Bem, na festa de Iemanjá, os Ogan de Oxún que estão por ali sorriem intimamente, sabendo o que só eles sabem: o orixá supremo do mar, para os africanos, não é Iemanjá - é Olokon, ou Olocum. No Brasil, Iemanjá tomou seu lugar na preferência popular, mas o supremo é Yá Olokun, um Irunnalé, orixá da linhagem do branco, da mais alta estirpe, mãe e senhora do mar. Supostamente mãe da própria Iemanjá. Na África Iemanjá é o orixá do rio Ogum, o maior da Nigéria. Como a Bahia não tem um grande rio, ela passou a ser protetora do mar. Porém na Bahia, no dia 2 de fevereiro, quando o rum, o maior dos atabaques inicia e marcação e puxa as cantigas, a dança é em louvor dos orixás, Ogum, Yansan, Omolu, Xangô. Todos são saudados, principalmente os orixás das águas, Nanan, Oxum e Iemanjá.
-Nos cultos da Umbanda do sudeste (Rio de Janeiro e São Paulo), o dia de Iemanjá é 8 de dezembro. .. tento falar, mas o Nunes não deixa, pois não está interessado na Umbanda paulista e nem na carioca.
- Iemanjá gosta de comida branca e sem sal. Arroz, manjar de coco e acaça (bolo de milho). Prefere a carne da ovelha. A saudação de Iemanjá é “odoyá”...
Imediatamente eu lembro que está chegando a hora de jantar., e digo isso ao Nunes.
- Aonde quer ir?
- Ao Iemanjá!
É preciso ser baiano e freqüentar terreiros para perceber certas sutilezas. Por exemplo, na praia da Barra existe um restaurante tradicional chamado Iemanjá especializado em moquecas de camarão (chique e caro). Próximo ao Pelourinho instalou-se um outro restaurante, com a mesma especialidade culinária. Simpaticamente, tomou o nome Odoyá, que é a saudação habitual a Iemanjá. Pode ser encontrado facilmente na Praça do Cruzeiro de São Francisco, número 1 ou 2. Com direito a happy hour e música ao vivo depois das dezessete horas. Ocasião em que são colocadas mesinhas na calçada.
Enquanto o automóvel corta as ruas de Salvador, eu e o Nunes tentamos identificar os orixás cubanos citados na rumba-espinela.


Concordamos que Ogum , Oxóssi, Omulu ou Xapanã, Ibejis, Exu são orixás de elevada qualidade.
Iyawó, também citada na espinela cubana, deve ser uma das baianas Iaô, filhas-de-santo que passam por um período de iniciação no peji. O termo nagô é mesmo yawô.
Iaô quer dizer esposa, mas na verdade tem o significado de noviça.
Obbatalá (ou Obatalá, na Bahia) é o céu. Pode ser uma qualidade de Oxalá, ou é o nome de um dos obá, da direita de Xangô. Trata-se de orixá da máxima importância, uma vez que foi o criador do gênero humano. É Nossa Senhora das Mercês, da religião católica.
Apesar da quase secreta maternidade de Olocum, costumam dizer que Iemanjá nasceu da união de Obatalá (céu) e de Odudua (terra), teimando, a Bahia, em ignorar Olocum, a verdadeira rainha do mar e mãe de Iemanjá.
Olofin também mencionado na espinela é a terceira manifestação de Olodumare.
Aqui na Bahia ou em Havana todas estas designações são derivadas da língua iorubá e Olofin significa “dono do palácio”.
Seu palácio é o céu e sua corte são os orixás.
Olofin só mantém contato indireto com a humanidade através dos orixás
Afinal, ele dirige os orixás e supervisiona seus trabalhos.
E o Nunes conclui:
- As três Nações do Candomblé brasileiro são: Jeje, Ketu e Angola. Cada uma das três Nações tem dialetos e ritualística própria. Na Nação Jeje os deuses são chamados de Voduns; na Nação Ketu, de Orixás e na Nação Angola, de Inkices.
E eu arremato com o resultados de alguns estudos anteriores:
- A Santeria cubana, que é conhecida regionalmente como La Regla Ocha, ou La Regla de Ochá, aproxima-se especialmente da Nação Ketu brasileira...
E fim de papo.
Chegamos ao restaurante Iemanjá , de frente para o imenso mar da Bahia.
Descemos apressados para enfrentar a maravilhosa moqueca de camarão que nos aguarda.
Para oeste o céu tinge-se das cores baianas do crepúsculo e posso adivinhar casais de namorados acantonados nas encostas do farol da Barra, contemplando o belíssimo espetáculo.
Depois do jantar corremos para assistir a última missa do dia na igreja de São Francisco, para os lados do Pelourinho.

Larry Coutinho


Para quem quiser saber muito mais:

-Carneiro, Edison - Candomblés da Bahia - Ed. Ediouro - inclui Vocabulário de termos usados nos Candomblés da Bahia.
-Vodissich, Edoard - Sincretismos da música afro-americana.
-De las Casa, Bartolomeu - “Brevíssima Relação de Destruição das Índias”- pode ser encontrado, em espanhol, na Internet.
-Coutinho, Larry - A arte da décima e da viola - no prelo.
-O Nunes, se você tiver sorte em embarcar no taxi dele, em Salvador, Bahia.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Costa Concórdia, o naufrágio, Ulisses e as sereias: a realidade e o mito. - Crônicas da Cidade Plural.

Na região do mar Tirreno que cobre a distância entre a ilha da Córsega e a costa italiana estende-se a área oceânica de domínio das sereias.

E ali fica a Ilha das Sereias, citada por Homero e de nebulosa localização.

A barca que zarpar do porto de Civitavecchia, a noroeste de Roma, logo navegará por entre as ilhas de Monte Cristo, Giglio, Pianosa, Elba e Capraia.

Além de muitas ilhotas e rochedos.

Em uma daquelas pequenas porções de terra habitam as sereias.

No continente, a área fica demarcada por dois cabos, o Argentário, ao sul, e o Piombino, a noroeste.

O barco que demandar o mar Ligúrico em busca dos portos de Livorno, Gênova ou Mônaco cruzará, por obrigação imposta pela rota ancestral, os estreitos entre o cabo Argentário e a ilha de Giglio e, um pouco depois, o estreito entre o cabo Piombino e a ilha de Elba.

Por ali passaram quatro mil anos de navegação romana.

Recitando em público, o rapsodo Homero contava em versos sobre as precauções que deveriam ser tomadas pelo navegador que empreendesse viagem marítima pela região, desde dois mil anos antes do nascimento de Jesus Cristo.

Não foi diferente com Ulisses.

Prevenido pela feiticeira Circe do sortilégio das sereias, do seu canto mavioso e do seu maravilhoso vergel, Ulisses preparou a cera com que vedou os ouvidos de todos os seus marinheiros.

Em seguida pediu que lhe atassem os pulsos e os tornozelos ao mastro.

Assim preparados, os companheiros, sentados, feriram com os remos o mar cinzento.

Quando o canto das sereias começou a seduzir Ulisses, o único cujos ouvidos não tinham sido vedados com cera, ele forcejou para livrar-se das cordas, no desejo invencível de seguir a canção.

Porém tinha sido bem amarrado, e seus companheiros que remavam não escutavam os cânticos em razão da cera abundante que lhes roubava a audição.

Assim os nautas venceram os dois cabos, o Argentário e o Piombino, prosseguindo a navegação em águas já distantes do perigo representado pelas sereias.

Ilustração retirada de vaso grego conta o episódio.

E surpreendentemente mostra as sereias: mulheres pássaros.

Sim, mulheres pássaros.

Filhas do rio Aqueló com a musa Calíope, seres da mitologia grega.

As moças, desoladas com o rapto de Proserpina, levada a força como esposa de Plutão, pediram asas aos deuses para que pudessem procurá-la por toda a terra.

Não encontraram Proserpina na superfície do planeta, pois esqueceram que o reino de Plutão era subterrâneo.

Terminada a busca infrutífera, meio mulheres e meio aves, passaram a ocupar os rochedos escarpados entre a ilha de Capri e o litoral da Itália.

As sereias não são representadas nem descritas como mulheres-peixe por nenhum autor realmente antigo, seja em textos, desenhos ou pinturas.

Possuem cabeça, torso feminino e asas e caudas de pássaros.

Os braços, além das asas, empunham instrumentos musicais: liras, flautas, gaitas campestres ou até mesmo partituras.

As mulheres-peixe da mitologia grega não são sereias, são nereidas, divindades gregas filhas de Nereu. As versões masculinas das nereidas foram os tritões, homens- peixe.

Na nossa obra chamada Nekiya, a Viagem do Herói ao País dos Mortos, os heróis que no ano de dois mil e dez navegavam barco do tempo da idade de bronze e tentavam repetir a viagem de Ulisses, tiveram encontro com as sereias, nas proximidades da ilha de Giglio:

“De repente o mar ficou calmíssimo, liso como a água de uma piscina.

As aves marinhas pareciam alvoroçadas, gorjeando e emitindo gritos estridentes e às vezes zombeteiros.

Voavam sobre as nossas cabeças com as asas rufando e seus corpos lançados em mergulho sibilavam estranhamente contra o ar parado.

As patas encolhidas das gaivotas formavam silhuetas de linhas fortes sobre a transparência luminosa das caudas emplumadas, abertas ao sol da manhã.

As grandes asas brancas, debruadas de negro, se agitavam repentinamente, depois se abriam em vôo planado enquanto as aves flutuavam no ar, lançadas em grande velocidade.

Parecia que às gaivotas argênteas associavam-se no vôo as águias pescadoras e as fragatas.

Estas, com dois metros e trinta de envergadura das asas, traçavam acrobacias ousadas, voando pouco mais acima das outras aves e evitando cuidadosamente as águas.

Algumas planavam contra o vento que começava a surgir da terra, imóveis, sem estremecer um só músculo.

No meio da confusão de gritos, sons, movimentos e cores destacavam-se robustas massas escuras sustentadas por enormes asas que pairavam e batiam em grande velocidade ou muita lentidão, misturando-se em caleidoscópios de fragmentos coloridos, mudando de forma a cada instante, impossibilitando o registro visual do detalhe.

Musico de ouvido treinado, Bernard foi o primeiro a perceber, numa espécie de canto gregoriano, as vozes femininas cantando em coro e mescladas ao alarido das aves marinhas.

Entretanto nossa embarcação, levada pelas ondas, pairava no mar oleoso.

Logo a arrebentação começou a soar mais forte e apareceram vagalhões vindos do mar alto levantando o barco e o carregando como graveto.

Começamos a perceber os rochedos em volta.

Eu e Bernard corremos em direção ao leme, para inverter a direção.

Porém as vozes cantavam docemente e nós paramos para escutá-las.

Enquanto isso aves gigantescas mergulhavam sobe as nossas cabeças, tão rápidas que só podíamos vislumbrar o turbilhão de penas e de asas, manchas coloridas desfocadas, afastando-se para o alto e novamente aproximando-se, em loucas picadas velozes.

- Sereias! Gritou Bernard. Tapem os ouvidos com as mãos... Vamos bater e naufragar!

Cavo e tenebroso o som do casco de madeira chocando-se rijamente contra a rocha viva acendeu uma faísca de razão em minha mente...”

Porém os navios modernos são governados por parafernália eletrônica de respeito.

GPS’s e computadores totalmente imunes aos cânticos das sereias.

Informado sobre o naufrágio do navio Costa Concórdia, ao encalhar nas areias da ilha de Giglio, lembrei imediatamente de Homero, de Ulisses, do meu livro e das sereias.

Naufrágio que ocorreu numa rota percorrida há milênios pelos romanos.

Será que os computadores de bordo sofreram pane de navegação e lançaram o transatlântico sobre a praia?

Ou alguém quatro mil anos depois, esqueceu das precauções de navegação recomendadas por Homero, o senhor do mito, e sucumbiu ao mavioso canto das sereias?

Tenho uma certeza: jamais saberemos da verdade.

Larry Coutinho