terça-feira, 22 de novembro de 2011

Summertime, a quimica da desconstrução construtiva - Crônicas da Cidade Plural.




Novo olhar sobre velhos temas


Summertime, a quimica da desconstrução construtiva

Tenho certeza absoluta que George Gershwin ficaria satisfeitíssimo ao ouvir a soprano Teresa Merritte abrir a apresentação da ópera Porgy and Bess, versão concerto, com a ária Summertime, mostrada em todo o seu esplendor erudito, ao cantar a “lullaby” para o filho pequeno.
A ópera, única tentada por George Gershwin, tem o libreto escrito por Ira Gershwin e Dubose Heyward.
Ou Dubose Heyward e Ira Gershwin.
Ou Dubose Heyward, sem Ira Gershwin.

Para quem não está ligando o nome à pessoa, aqui vai uma amostra da letra da ária:
Summertime, (ária-spiritual), George Gershwin, Dubose Heyward e Ira Gershwin

“Sommertime an’the livin’is easy
Fish are jumping, an’the cotton is high
Oh yo’daddy’s rich, an’ yo’ ma is good lookin,
so hush, little baby, don’yo’ cry.
One of these mornin’s you goin’ to riseceps singin’,
then you’ll spread yo’ wings an’ you’ll take to the sky.
But till that mornin’ there’s a nothin’ can harm you,
with Daddy an’ Mammy standin’ by”

Intérpretes: Inúmeros. Ouvimos a versão lírica cantada pela soprano Teresa Merritte, que no disco em questão interpreta Clara e a Strawberry Woman (Mulher Morango).

As apócopes, elisões e simplificações das palavras fazem parte do libreto e da intenção original do autor, e remetem ao folclore e ao spiritual.
Os irmãos Gershwin basearam a ópera em “Porgy”, a peça teatral de Dubose Heyward.
A ação se desenrola em Cartfish Row, na Carolina do Sul.
George Gershwin pretendeu criar obra de inspiração folclórica.
Para isso empregou ritmos e inflexões da música e do dialeto tradicionais da região.
Na ópera não falta sequer o vendedor de felicidade, Sporting Life, sempre oferecendo um certo pó...
Um certo pó... vamos deixá-lo para mais tarde.
George Gershwin tentou fazer uma ópera americana do sudeste e a fez moldada em jazz e no estilo africano-americano.
Sem dúvida a ária Summertime, cantada pela personagem Clara logo no início da ópera é uma das mais lindas entre as compostas em todos os tempos.
Dona de um sortilégio mágico, que a fez gravada por milhares de cantores, em trinta mil versões diferentes.
Fora da ópera (1935) , Billie Holiday a gravou em 1936, iniciando a longa série.
Louis Armstrong e Ella Fitzgerald criaram maravilhoso dueto entre o trumpete e a voz. O trumpete claro, impositivo e cheio de modulações de Louis Armstrong, e a voz simpatica de Ella Fitzgerald.
Gene Vicent, Miles Davis, Sam Cooke, Cody Simpson e milhares de outros intérpretes e de músicos tentaram as suas versões de Summertime.
E, à medida que criaram novas formas de apresentar a canção ajudaram a desconstruir a obra original de Gershwin.
Finalmente Janis Joplin e os Big Brother & the Holding Company, no álbum Cheap Thrills (1969), com vocal de Janis Joplin e arranjo de S.Andrew, literalmente estraçalharam a versão inicial de Gershwin.
A simples palavra Sumertime, quando gritada por Janis Joplin aparece rasgada, amassada, destruída, e dá aos ouvintes a nítida sensação que não são apenas pedaços que se soltam da palavra, mas são vestígios da própria cantora desmembrada em postas, bocados estraçalhados da sua angustia, perplexidade e dor. (eis que parece retornar o pó da felicidade oferecido pelo personagem Sporting Life).
Para mim, três artistas representam compromisso pessoal com as drogas e elas estão indelevelmente gravadas em suas carreiras e nas suas obras.
Por questão da realidade ou da lenda.
São eles Chet Backer, o colossal trumpetista, Bob Marley, o maior sucesso do regae, e finalmente Janis Joplin.
Há algum tempo eu escrevi sobre o “ay” do sul da Espanha quando aplicado ao flamengo.
Quem me alertou sobre o “ay” foi a pesquisadora Alicia Medeiros (el Flamengo, editorial Acento, Madrid)
Eis, em tradução pobre e apressada, o que Alicia revela:
“Esse “ai!”, palavra espantada, desgarrada e rebelde que ainda não encontrou o grafismo exato, é na realidade a dimensão maiúscula do flamengo, donde brota a grandeza trágica de um povo que representa assim os pináculos da raiva e da ira. É o homem esfarrapado, destruído, a mão que não encontra um ombro amigo”.
Pois bem.
Podemos aplicar inteiramente essas idéias à interpretação de Janis Joplin.
Ela consegue transformar o spiritual de Gershwin, que é também uma canção de ninar (lullaby), num grito, numa espécie de pedido de socorro.
E dá à ária toda a grandeza que faltava até mesmo na versão oficial de Gershwin.

Larry Coutinho

Salões de chá na provinciana São Paulo - Crônicas da Cidade Plural.

Nas décadas de cinqüenta e sessenta eu costumava freqüentar alguns salões de chá, na São Paulo ainda provinciana.

Casa Lu
Na rua Barão de Itapetininga.
Aparentada em suas finalidades a Maison Blanche de Curitiba
Vendia roupas para bebês e no mezanino havia salão de chá e um piano-armário equilibrado em palco diminuto.
Algumas vezes eu tocava sanfona, sempre à espera de um gordo cachê que nunca foi pago.
Ali nasceu o famoso samba-paulista “Quinhentos e seis” (famoso num universo de dez ou doze pessoas).
A musica de autoria do violinista (tínhamos violinista!), e a letra escandida pelo baterista dizia simplesmente: “Quinhentos e seis/ é o apartamento dela./ Você tem que me dizer/ quem é ela!” - e o breque “- Quinhentos e seis!”.
A letra, imaginada e criada pelo baterista referia-se ao endereço e à namorada do pianista, que ignorante do número da porta da própria amada, cantava alegremente o refrão, sem desconfiar de nada.
Tal era o entusiasmo do rapaz que jamais conseguimos concluir o samba de maneira decente.
Terminávamos sempre em gargalhadas incontroláveis.
Nossa platéia compunha-se de espantadas senhoras a comprar roupas infantis e fraldas, no pré e no pós-parto, tias e avós em busca de presentes úteis para os sobrinhos ou para os netos recém-nascidos.
Reconheço que tudo era um tanto surrealista.

Livraria Jaraguá
Já tratei do salão de chá nos fundos da livraria, onde nunca entrei, sempre à espera do convite que jamais aconteceu.

Mappin Stores
Praça Ramos de Azevedo, em frente ao Teatro Municipal de São Paulo.
Qual formidável camaleão que troca de cor à medida que caminha, o restaurante do quinto andar onde eram servidos almoços ao meio dia recebia violinos e mesas arrumadas para o chá da tarde.
E chegavam as senhoras.
Com os filhos, com as amigas, com as irmãs ou parentes e às vezes sozinhas.
Meninas de quinze anos com as amigas, todas uniformizadas.
Vindas da Escola Normal., na praça da República.

“Vestida de azul e branco
Trazendo um sorriso franco
No rostinho encantador...”

E alguns homens aparentemente solitários.
Havia sempre musa inspiradora em mesa próxima.
Troca de olhares, sinais de dedos, sorrisos envergonhados e pudicos...
Não concluam com precipitação, apenas sinais externos, não muito profundos, como era costume na época.
Estive ali aos onze ou doze anos deidade, acompanhando mamãe, depois das compras de Natal em 1947 ou 1948.
Mais interessado no fabuloso jogo metálico de montar (importado) do que propriamente no chá.
Nunca mais voltei.
O chá no Mappin!

Iara
Na rua Augusta.
Chá, torradas, queijos e doces. Uma fantástica torta de maçã e um apffelstrudel extraordinário.
Ainda escreverei um texto sobre as diferenças principais entre a torta e o enrolado de maçãs.
O Iara, lugar especial para namoros juvenis.
A parede era forrada por painéis de madeira.
Totalmente gravados a canivete pelos freqüentadores.
Tipo: João e Maria estiveram aqui. Nove de julho de 1953.
Centenas de nomes e de caligrafias diferentes, e alguns desenhos simples. Corações, flores, mãos ....
Meu próprio nome andou por lá, ligado ao de uma amável senhorita.
Voltei anos depois para apagar a referência, pois a senhorita era outra.
Então descobri que periodicamente os painéis eram removidos e trocados por novos.
Sábia manutenção!

Larry Coutinho