terça-feira, 13 de julho de 2010

Edifício Joelma - Crônicas da Cidade Plural




O edifício Joelma
(Atual Edifício Praça da Bandeira)
Avenida Nove de Julho, 225


Este belo edifício dourado pelo pôr-do-sol do outono paulistano tem lá a sua história.
Dependendo da crença e do conhecimento do observador os primórdios podem remontar aos anos de graça de 1948, de 1974 ou a um período indígena pré-cabraliano.
Vou começar pela última hipótese.
O indiozinho Diehambi teria, no máximo, cinco anos de idade, quando viu a galinha do mato pela primeira vez, a uns dois quilômetros distante da aldeia, na beirada do riacho.
O pássaro saíra de trás de uma moita, atravessara a picada e sumira no mato denso, não sem antes se deter por alguns segundos e dar uma boa olhada no menino.
Diehambi contou para a mãe. A índia alarmou-se. Ali onde Diehambi estivera brincando era terra deserta. Nem sequer os pássaros a sobrevoavam. Silêncio quebrado apenas pelo marulhar do riacho maldito. Todos, humanos e animais, evitavam a região e o fato de haver por lá uma galinha do mato fez com que a índia procurasse o velho Cutaria.
O índio velho escutou a narrativa, nada disse à mulher. Ou antes, assegurou que dali em diante ele cuidaria do assunto.
No dia seguinte, Cutaria chamou três rapazes, saiu com eles para o mato, descansou numa clareira e então falou.
- Eu quero que vocês procurem caçar no riacho...
-Mas lá não tem caça! - ponderou um dos rapazes - até aves e peixes evitam o lugar!
- Por isso mesmo! O menino Diehambi esteve brincando por lá e viu uma galinha do mato, atravessando a picada... eu quero que vocês observem as matas em volta do riacho. Procurem pelo rato soia, por algum morcego extraviado, ou pelo macaco jurupá...
- São algumas das formas viventes que a alma-que-corre costuma assumir! - exclamou o mais velho dos rapazes - iremos ver o Anhangá?
- Não! - respondeu Cutaria. Anhangá é invisível aos olhos dos mortais. Vocês somente verão as formas dos bichos assumidas pelo Anhangá.
- Se encontrarmos o Anhangá nós deveremos matá-lo?
-Não. Procurem atrair o animal para a aldeia. Mansamente, sem agressão.
- O que irá acontecer conosco?
- Vocês terão dores no corpo. Verão uma das formas do Anhangá. E ninguém nunca escapou disso. A cabeça irá doer muito, sofrerão alucinações, panema e febre. Não tentem caçar os animais. Se o fizerem, o Anhangá assumira a forma de um grande veado branco, com olhos de fogo e uma cruz no meio da testa. Então atacará, expelindo fogo pelos olhos, com fúria incontrolável. Vocês morrerão queimados pelo fogo do olhar do espírito invisível, antes mesmo de levarem a primeira chifrada...
Os três rapazes partiram para cumprirem a missão. Porém um deles procurou o padre Raposo, na última choça, no final da mata e contou o que estava acontecendo.
Nos dias seguintes o padre andou sessenta quilômetros até a beirada do mar onde morava o seu superior, e contou:
-Santíssimo mestre, o Diabo está de volta!
-Anhangá? - perguntou o superior.
-Anhangá!- confirmou o padre.

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Nos primeiros tempos de colonização o riacho era também conhecido como Córrego das Almas. Para os indígenas, o rio era “um bebedouro de assombrações”. Água salobra que causava doenças.
-Anhangaba-Y! - proferiu o índio velho, impedindo o mais jovem de beber o mais jovem, sedento pelo esforço da caminhada.
- Aqui mora o demônio! - concordou o índio jovem - é o riacho do feitiço, da diabrura, do malefício... Anhangá!
- Sim - prosseguiu o mais velho - reino de Anhangá, o demônio, senhor das forças do mal....
E afastaram-se rapidamente, em busca de outros ambientes e de outras águas.
Já no século dezessete as águas eram usadas apenas para lavar objetos e para banhos.
Ninguém na colonial São Paulo atrevia-se a beber ou a utilizar para a cozinha aquelas águas amaldiçoadas, em volta das quais o centro velho da cidade expandia-se.

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Num hediondo crime de morte, muitas vezes o enigma não é descobrir o assassino, mas sim qual a razão de uma matança sem sentido.
Completei doze anos de idade em 1948, quatrocentos anos depois daquele dia em que o indiozinho Diehambi descobriu a galinha do mato pela primeira vez, a uns dois quilômetros distante da aldeia, na beirada do riacho.
Na cidade que ainda era tranqüila, um acontecimento violento ocupou as manchetes dos jornais durante dias, talvez por semanas, e repercutiu durante muitos anos nas histórias paulistas: o famoso Crime do Poço.
Em minha cabeça, emergindo das brumas do passado, surge um dístico não identificado:

“Que lindo o poço
Parece um moço...”

Que diabo! De onde veio essa insanidade?
A verdade é que, no fim de outubro, o morador da casa na rua Santo Antonio, número cento e quatro, quase na esquina da avenida Nove de Julho, construiu no quintal um poço de cinco metros de profundidade alegando que ia montar uma fábrica de adubos e a água encanada não servia ao trabalho.
A obra foi feita em um dia por dois pedreiros que receberam dois mil cruzeiros pelo trabalho.
O morador profanava as terras e as águas do Anhangá!
Porém, na agitada metrópole que já se anunciava, certamente a galinha do mato, o insignificante rato soia, algum morcego extraviado, ou o macaco jurupá...e quem sabe, mesmo o veado branco com olhar de fogo e uma cruz no meio da testa não seriam encontrados facilmente. É possível que o Anhangá tenha assumido outras formas mais urbanas, ele que pode tudo.
O morador teve dores no corpo. A cabeça doeu muito, sofreu alucinações, panema e febre. Entretanto, como não chegou a ver o veado branco, escapou de morrer queimado e de levar a primeira chifrada.
Porém já estava contaminado pelo espírito do mal.

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Inicio de novembro, mais precisamente, dia quatro.
Aproximava-se o Natal de mil novecentos e quarenta e oito.
A casa modesta que abrigava as três mulheres e o rapaz de vinte e seis anos, fora construida exatamente no local onde, quatrocentos anos atrás, o indiozinho Diehambi vira a galinha do mato pela primeira vez, a uns dois quilômetros distantes da aldeia. Na beirada do riacho.
No reino de Anhangá, no preciso diagnóstico do pagé Cutaria.
Da terra salobra o mal emergia em ondas invisíveis, porém poderosas.
Entre nove e dez horas do novo dia, o rapaz e sua irmã sentaram-se para tomar o café da manhã. A mãe servia a mesa, tranqüilamente.
Então, sem avisos nem preâmbulos, o rapaz cujo nome era Paulo matou a tiros a mãe, que trazia na bandeja o bule com o café e três pãesinhos franceses, e a irmã Maria Antonieta, entretida com o jornal matutino.
A irmã Cordélia foi morta ao chegar do trabalho para o almoço.
Paulo enrolou cada uma das três mulheres em panos pretos que ele comprara antecipadamente.
Sozinho, arrastou os três corpos para o poço, e lançou os cadáveres de ponta cabeça.
Durante a tarde e quase toda a noite Paulo trabalhou com a pá, atulhando o poço, que amanheceu totalmente coberto no dia seguinte.
Cordélia não voltara para trabalhar e por isso, à noitinha, um funcionário do escritório apareceu na casa da rua Santo Antonio, a procura de notícias da jovem.
-Cordélia viajou com a mãe e a irmã para visitar uma família no Paraná - informou Paulo ao funcionário.
No dia seguinte telefonou para a empresa e contou, choroso, que a mãe e as duas irmãs haviam perecido em um acidente de automóvel perto de Curitiba.
Desconfiado, o dono da empresa procurou a polícia.
Nenhuma prova do acidente foi encontrada e no final de novembro começaram as investigações.
A policia invadiu a casa da rua Santo Antonio, número cento e quatro e começou a abrir o poço.
Paulo pediu licença para ir ao banheiro e aí se suicidou com um tiro.
A mãe e as duas irmãs foram encontradas no poço, cobertas em mortalhas negras e sepultadas de cabeça para baixo.

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A proximidade do fim de semana animava os meus ossos cansados.
Era o dia primeiro de fevereiro de 1974, uma sexta-feira.
Passavam alguns minutos das nove horas da manhã e eu dirigia apressado pela avenida vinte e três de maio.
Queria chegar ao meu escritório na rua do Ouvidor, porém o trânsito não andava.
Finalmente andou, fiz a última curva antes de chegar ao Anhangabau e contemplei, horrorizado, a primeira das visões do inferno que eu teria naquele dia.
O Edifício Joelma ardia como uma tocha e percebi pontos negros que saltavam dos últimos pavimentos para a morte certa de encontro ao solo.
Dezenas de carros de polícia, de bombeiros, helicópteros que não se atreviam a sobrevoar as chamas, uma multidão calada e um guarda de trânsito que apitava alucinadamente, procurando livrar a passagem pelo vale do Anhangabau.

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Da janela do escritório eu procurava avisar pelo telefone aos policiais e bombeiros o que conseguia ver: - Tem um homem fora da janela do vigésimo andar! Está apoiado num ressalto de concreto e parece calmo. Esperem! Parece que tem gente na laje, no meio da fumaça...
- Não dá para fazer nada. Os dez ou doze primeiros andares são de garagem. É só até onde as escadas de incêndio conseguem chegar. Você está dizendo que tem gente na laje? Vou pedir auxilio à aeronáutica.
De fato, na laje do prédio algumas dezenas de pessoas corriam por entre as espessas nuvens de fumaça. As paredes laterais eram lambidas por imensas chamas compactas.
Meia hora depois se aproximou um grande helicóptero da aeronáutica.
Primeiro tentou jogar uma corda para o homem calmo apoiado num ressalto do vigésimo andar e já fora do prédio.
A longa corda não chegava.
O longo rotor não permitia aproximação mais efetiva.
Então o heróico piloto ousou.
Afastou um pouco o aparelho e subitamente investiu contra o prédio.
A longa corda afastou-se, depois voltou, em movimento pendular.
O homem fora da janela não pensou duas vezes.
Coberto por fagulhas de fogo, resultado das pontas dos rotores do helicóptero despedaçando-se no embate com o concreto ele atirou-se no espaço, agarrou a corda e assim mesmo, dependurado sobre o abismo, foi levado em vôo cuidadoso até o viaduto dona Paulina, mais ou menos próximo.
Minutos depois o helicóptero voltou e pairou alto sobre o prédio. Embaixo dele, as chamas da imensa fogueira. E o destemido piloto foi descendo, lentamente.
Gritos partiram do alto da laje. Um soldado desceu pela corda.
A longa corda foi usada inúmeras vezes para transportar vítimas da tragédia.
Animada pela salvação de alguns, a multidão gritava, inutilmente, para as pessoas não saltarem.

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Naquela manhã de fevereiro setecentos e cinqüenta pessoas trabalhavam nos diversos andares do Edifício Joelma.
Muitas delas não desfrutariam do fim de semana.
Os bombeiros acreditam que um aparelho de ar condicionado, no décimo segundo andar, entrou em curto-circuito e pegou fogo. As chamas passaram para as cortinas e atingiram as placas de plástico inflamável que cobriam o teto. Todo o material combustível nos outros escritório pegou fogo.
As 8h50 o incêndio, sem nenhum controle, tomou conta do edifício.
Imprudentemente o elevador do prédio foi utilizado.
Salvou inúmeras vítimas em diversas viagens.
Finalmente o carro parou, no vigésimo andar.
Mais tarde, no rescaldo, foram achados dentro dele treze corpos carbonizados.
Para quem acredita, resta a hipótese do Joelma ter sido incendiado pelo Anhanga, na forma do veado branco com hálito de fogo.

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Depois do incêndio o prédio foi totalmente reformado e hoje á apenas um entre os milhares de edifícios de negócios da cidade.
Mas não se livrou das lendas.
Da mulher vestida de branco que caminha pelos seus corredores, nas horas tardas da noite.
Vista e conferida por um jovem advogado que fazia hora-extra, e por um motorista de Kombi que aguardava o descarregamento do seu veículo, em certa noite em que esperava sozinho na garagem a volta do seu auxiliar.
Os treze corpos encontrados no elevador foram enterrados lado a lado no cemitério de São Pedro, mais conhecido como Cemitério de Vila Alpina.
Dizem que nas segundas feiras, dias dedicados às Almas, se pode ouvir, no Cemitério, o choro de pessoas, que só cessa quando as sepulturas das 13 vítimas são molhadas.
Ali estão apenas os corpos, pois as almas ainda vagueiam pelo Joelma, realizando milagres.
Cartas de uma das vítimas psicografadas pelo medium Chico Xavier no livro “Somos Seis” serviram de base para o argumento de um filme rodado em 1979: “Joelma, 23 andar”.
O belo e sossegado edifício dourado pelos raios de sol, no final do outono paulista.

Larry Coutinho (foto e texto)

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