domingo, 4 de março de 2012

Entre o mar e a fogueira - Crônicas da cidade plural

O dia 8 de março aproxima-se a passos largos.
Será mais uma justa comemoração festiva, no dia Internacional da Mulher.
Mulheres queridas, não pensem que nós homens ignoramos as crueldades, desventuras, injustiças, imposições, agressões e preconceitos aplicados contra vocês, no decorrer da história e através dos tempos.
Acompanhamos com crescente indignação, acreditem.
Porém muitas de vocês já conquistaram elevado e protegido patamar de onde podem decidir o próprio destino com alegria e firmeza.
Falta muito para conquistar, porém vejamos o que já ficou para trás.
Talvez não seja agradável relembrar, porém é sempre necessário fazê-lo para que os fatos ocorridos não aconteçam novamente.

Dois textos chamaram nossa atenção para certas ocorrências que até então ignorávamos, ou que pelo menos não correlacionávamos.
O primeiro encontra-se no livro de Laura de Mello e Sousa O Diabo e a Terra de Santa Cruz; o outro, no pretensioso porém bem feito volume de Pedro Homem de Mello sobre as Danças Portuguesas.
O que um diz nada tem a ver com o que afirma o outro.
Ligam-se somente em um momento pontual.
Laura de Mello e Souza mostra uma lista, elaborada a partir de Autos de Fé da Inquisição de Lisboa, indicando quatorze Autos de Fé instaurados contra feiticeiras, todas elas parentes de homens envolvidos na lide marítima.
Na verdade eram esposas, filhas ou viúvas de marinheiros, pilotos, mareantes ou homens-do-mar.
Pedro Homem de Mello disserta sobre a natureza das danças regionais portuguesas, já no século vinte.
Ressalta o papel dominante do homem, no sapateado e no toque de castanholas, enquanto a mulher tem o dever de mostrar-se apagada e discreta.
Trata assim, de forma geral, a dança de diversos Concelhos (Concelho, com c, como se grafa em Portugal) . No entanto, informa que no Concelho de Viana do Castelo (Alto Minho), o Carreço é uma dança para a mulher.
Dali o homem parte, muito cedo.
Não se trata mais do homem do mar, mas de pedreiro ou estucador, que passa longos períodos longe de casa.
De vez em quando regressa à aldeia.
As mulheres ficam, cuidando dos filhos, da casa, trabalhando nas hortas e pomares e como a região é de vinho, tratando das vinhas e adubando os campos com algas e sargaços que vão buscar no mar.
Então.
A dança chamada Carreço parece ter como finalidade principal a valorização dos corpos e dos movimentos femininos.
As figuras dançadas põem em relevo os dotes das mulheres.
A posição altiva da cabeça destaca-lhes o “perfil de medalha”, os braços, meio levantados, assemelham-se ao jeito de asas.
Elas são, naquele instante, soberanas, e quase conseguem voar.

Do Alto Minho, seguimos com Laura de Mello e Sousa ao país basco.
Lá, no início do século dezessete lindas mulheres bascas eram deixadas sozinhas em casa pelos maridos pescadores, verão após verão.
Para De Lancre, um temível juiz da inquisição que atuava em Labourd - setor francês da região basca - essas mulheres solitárias e atarefadas, destilavam com o olhar “perigos de amor e sortilégio”.

Desde o século nove as baleias (Balaena biscayensis), no fim dos outonos, afluíam ao Golfo da Gasconha onde permaneciam por todo o inverno.
No verão, chegavam os cachalotes.
Alguns encalhavam nas praias das enseadas onde eram retalhados pelas populações costeiras.
Porém a partir do século treze escassearam os cetáceos encalhados e os bascos começaram a procurá-los no mar.
No início os pescadores limitaram-se ao mar de Biscaia.
Dai desprenderam-se, nos séculos quinze e dezesseis, em caravelas, aventurando-se no oceano.
Sempre seguindo as baleias chegaram aos confins do Atlântico Norte: Spitzberg, um grupo de ilhas que hoje pertencem à Noruega, bem próximas ao local em que afundou no ano 2000 o submarino nuclear russo Kursk, onde era abundante a Balena Mysticetus, ou baleia do ártico; e também aos mares da Islândia e da Groenlândia. Por fim, chegaram ao Labrador. (Ver San Juan, 1565).
No ano de 1600, em apenas um porto basco, Saint-Jean-de-Luz, existiram sessenta baleeiras, grandes o suficiente para trabalhar os cetáceos em pleno mar e extrair-lhes o toucinho, ou óleo.
Cada barco era tripulado por 50 ou 60 homens.
A essa altura, 3.000 bascos ou mais se ocupavam em capturar baleias.
As instalações bascas descobertas no Labrador são inúmeras.
Por exemplo, na chamada Baía Vermelha os vestígios arqueológicos estudados indicaram que os navios e homens passaram ali longos períodos de tempo.
Mostraram não só que alguns barcos baleeiros naufragaram, mas também que esqueletos humanos repousaram para sempre no fundo das águas geladas do Ártico.

Quanto aos portugueses, lançados ao mar desde o século quatorze, houve época em que um quinto, às vezes um quarto da população estava envolvida na faina ultramarina.
Digamos, um ou dois homens por família.
As suas naus, caravelas, carracas e galeões navegavam por todos os mares.
Além dos marinheiros, milhares de outros portugueses ocupavam-se das tarefas de colonizar terras distantes.
Inteiramente abandonados em locais selvagens que deveriam desbravar.
Espalhavam-se por área geográfica imensa, das Molucas ao Brasil.

Porém a atividade principal lusitana era o comércio, por isso as carracas percorriam incessantemente a chamada Carreira das Índias e a Carreira do Brasil.
Em linhas gerais, uma entre três embarcações naufragava.
Outras se incendiavam, algumas poucas eram capturadas pelos inimigos, muitas, por não poderem mais navegar, roídas pelos gusanos, eram simplesmente abandonadas nas Índias, ou onde estivessem.

Quanto à Espanha, os registros de naufrágios de caravelas no golfo do México são impressionantes.
Igualmente passaram por maus pedaços os chamados Galeões de Manila e as frotas de veleiros que procuravam abastecer de ouro e prata os cofres da Casa de Contratación, em Sevilha, também conhecida como Casa de las Índias.
A ação inquisitorial não se limitava porém à península Ibérica.
Diz Laura de Mello e Sousa:

“ Na Bretanha, onde também abundavam marujos, suas mulheres faziam sortilégios para terem os maridos de volta: limpavam as capelas próximas às suas aldeias e jogavam o pó no ar. Com isto, esperavam ter vento favorável para o retorno dos esposos”.

Como o amigo leitor começa a perceber não estamos aqui muito preocupados com aqueles que navegavam.
Antes, interessam-nos os que ficavam em terra, aguardando notícias que nunca vinham e, em muitas ocasiões, maridos, pais e filhos que jamais retornavam, sem que nada se soubesse sobre eles.
Algumas mulheres, talvez desesperadas, depois de anos e anos sem notícias dos seus homens, recorriam às adivinhações, curas mágicas, benzeduras e bruxarias.
Colocavam-se, então, a um passo da fogueira.

Quando o poder religioso ainda confundia-se com o poder real, o Papa Gregorio nono, em 20 de abril de 1233, editou duas bulas : a bula Vox in Rama e a bula Licet ad capiendos, a qual verdadeiramente marcou o início oficial da Inquisição.
Eram dirigidos aos padres dominicanos, inquisidores.
Em 1252, o Papa Inocêncio quarto editou a bula Ad extirpanda, que institucionalizou o Tribunal da Inquisição e autorizou o uso da tortura.
O poder secular era obrigado a contribuir com a atividade do tribunal da igreja.

Pobre da infeliz que caísse nas garras de tais tribunais.
Nos processos da inquisição a denúncia era prova de culpabilidade, cabendo à acusada a prova de sua inocência.
Durante quase quatrocentos anos, inúmeros autores iluminados trataram de crimes, confissões e penas.
Em 1376 o inquisidor Nicolau Eymerich escreveu o Directorium Inquisitorum que podemos traduzir pobremente como Manual dos Inquisidores onde externou conceitos, normas processuais, termos e modelos de sentenças a serem utilizadas pelos inquisidores.
O mais famoso dentre todos os livros sobre bruxaria, o Malleus Maleficarum , que também pode ser pobremente traduzido como O Martelo das Bruxas, ou ainda Manual de Caça às Bruxas, foi escrito em 1468 por dois monges dominicanos: Heinrick Kramer e Jacobus Sprenger.
Não iremos dissertar sobre a obra; ela é facilmente encontrada nas livrarias, tendo sido reeditada em português e chegou a ser best-seller da década de 80, no século passado.

Os inquisidores e seus tribunais eram ativíssimos e entre 1450 e 1700, vinte mil pessoas foram queimadas na Europa, acusadas de feitiçaria.
Portanto não estamos tratando de perfumarias.
A verdade é que o pico de repressão à feitiçaria na Europa situou-se entre os anos 1540 e 1630, ou final do século dezesseis e início do século dezessete.
Exatamente no período das grandes navegações, quando o mundo começou a ser descoberto e desenhado em mapas.
Porém as conquistas técnicas só viriam depois.
O mar era ainda território do demônio, povoado por redemoinhos, tufões e gigante, figura que nos foi apresentada por Camões ao narrar a epopéia de Vasco da Gama: o Adamastor, além do aterrador calor solar a torrar naus e corpos além da linha do equador.

Imagine agora amiga leitora que você é uma camponesa que vive à beira do mar Tenebroso, nome aplicado pelos antigos ao oceano Atlântico.
Seu marido e dois filhos homens embarcaram em caravelas, cada um para um lado do mundo, e depois de três anos de exaustivos trabalhos de manutenção de pequena quinta e de luta pela sobrevivência nenhuma notícia chegou aos seus ouvidos.
Porém, algumas casas para lá, quase na saída do povoado, mora uma mulher que fez um pacto com o demônio e pode dar-lhe boas novas de cada um dos seus.
Ela é amiga e você é convidada para tentar fazer arribar uma das naus na baía fronteira.
Para quem não está familiarizado com o termo, arribar significa que certas condições do mar, ou do navio, obrigam o comandante a entrar em porto no qual não tencionava lançar ancoras.
É um dos seus filhos que volta!
Basta, para conseguir tal milagre, invocar o diabo marinho em suas orações:

“Grande diabo marinho, a ti entrego este pinho...”

Suas mãos tremem, amiga leitora, mas a fé e o avassalador desejo de tornar a ver pelo menos um dos filhos fazem com que você prossiga na reza, observada por duas ou três pessoas do povoado.
No dia seguinte você é presa, em virtude do pequeno ato de contrição ao demônio.
Será acusada de heresia, diante da Inquisição e duramente torturada, até dizer os nomes das pessoas que estavam presentes, e portanto cúmplices em sua tremenda falha.
Uma delas é sua filha de 13 anos e ela também será presa e torturada.
Você será mantida incomunicável; e ninguém, a não ser os agentes da Inquisição tem permissão de lhe falar; nenhum parente poderá visitá-la.
Você ficará acorrentada. Você é uma pobre mulher, sem renda mensal, que vive dos legumes e frutas da sua horta.
Não poderá custear as despesas da prisão, então não receberá alimento.
Seu julgamento será secreto e particular, e você terá de jurar nunca revelar qualquer fato a respeito dele, no improvável caso de ser solta.
Não conhecerá nenhuma das testemunhas apresentadas contra você, e não poderá apresentar nenhuma em sua defesa.
Os inquisidores afirmam que tal procedimento é necessário para proteger os informantes.
A maioria do tribunal considerou que seu crime é provável, embora não certo.
Então votou pela aplicação da tortura.
Depois da tortura ter sido decretada foi adiada na esperança de que o medo a levasse à confissão plena.
A confissão pode beneficiá-la com a absolvição de um padre para salvá-la do inferno.
Você está sujeita as penas impostas pela Inquisição, que podem ir desde simples censuras (leves ou humilhantes), passando pela reclusão carcerária (temporária ou perpétua) e trabalhos forçados nas galeras, até à sua excomunhão para que seja entregue às autoridades seculares e levada à fogueira.

Em determinado dia vestem-na de branco, uma longa camisola, e a obrigam a participar da procissão dos penitentes.
Durante o longo trajeto será açoitada duramente, até o sangue jorrar de suas costas.
Caindo, será obrigada a levantar e continuar caminhando.
Ao ser acorrentada novamente na sala de torturas, você estará suplicando pela fogueira.
Já não sabe quem é, não sente mais dores nem necessita de alimentos ou água.
Esqueceu do demônio do mar, do seu marido e dos seus filhos.
E enquanto testemunha sua subida para a fogueira, o juiz inquisidor dirá ao par:

“- Eu a condenei porque seus olhos destilam todos os perigos de amor e sortilégios! É a verdadeira tentação do demônio! Observe!”

No inicio do século dezessete houve um grande surto de feitiçaria basca.
Segundo Laura de Mello e Souza, a explicação veio do doutor Martínez Isasti, em sua Relación, que afirma:

“Graças ao seu pacto com o diabo, as feiticeiras dizem o que se passa no mar e no fim do mundo; às vezes, são verdades, e outras são mentiras. Aconteceu-lhes dizer, no dia seguinte a um acontecimento, o que se tinha passado a cem ou quinhentas léguas de distância, e a informação era verdadeira. (...) É isto que impele tantas mulheres a se tornarem feiticeiras: desejam obter notícias de seus maridos e de seus filhos, que estão nas Índias, Terra Nova ou Noruega.”

Além do incrível poder de sedução sexual inerente às bruxas, capaz de transtornar para sempre a vida do mais casto dos homens, condição naturalmente presente naquelas pobres mulheres, mães e esposas de marinheiros, elas também podiam voar, como confessou aterrorizado o próprio juiz De Lancre.

Então, vemos as lindas mulheres portuguesas do Alto Minho, com seus braços imitando asas na dança chamada Carreço.
São mulheres cujos maridos estão ausentes e dificilmente retornarão para o lar.
Elas foram forçadas a aprender a sobreviver na solidão.
Tornaram-se fortes, voadoras, no sentido metafórico do termo.
Enquanto passeiam seus perfis altivos pelos meandros da dança, iluminados pelas chamas de uma fogueira especialmente acesa para animar a festa, estão seduzindo aos poucos homens presentes.
Talvez ao prefeito ou ao pároco.
E a festa evoca o tempo em que os homens pescavam bacalhau nos mares da Noruega, ou mergulha mais profundamente no passado, lembrando os bravos marinheiros que passavam anos explorando os mares desconhecidos, e que, a exemplo dos nativos de certas ilhas dos mares do sul acreditavam, equivocados, que a magia de segurança no mar era privativa do homem.
Se na Idade Média havia demônios especializados em afundar os navios, nos séculos dezesseis e dezessete as bruxas podiam interferir nos seus percursos.


Também em terras brasileiras a Inquisição andou promovendo seus Autos de Fé.
É o tema principal do trabalho de Laura de Mello e Souza. Inúmeros sortilégios ligando a feitiçaria à navegação são narrados pela pesquisadora.
Para quem tiver interesse maior no assunto, recomendo seu livro, já citado anteriormente.
Mas não resisto à tentação de reproduzir o feito de Maria Teresa Ignácia.
Era ela a feiticeira portuguesa que atuava com o apelido de sóror Maria do Rosário.
Foi procurada por uma mulher que se queixava da ausência prolongada do marido.
A feiticeira ouviu as queixas e decidiu ajudá-la.
Juntamente com umas amigas e o demônio, foram até a Índia em figura de corvos, achando o tal homem doente numa cama.
Puseram-no numa embarcação e o trouxeram pelos ares até a casa de sua mulher, depositando-o na porta.
Feito assombroso, sem dúvida.
Ninguém poderia voar, diziam os inquisidores.
Somente Deus ou os demônios.
Ou, quem sabe, alguém que houvesse feito um pacto de sangue com Satanás.
Imagine agora, querido leitor, nossa amiga sóror Maria do Rosário, uma pobre mulher tomada por certas alucinações, acorrentada a uma roda de navalhas que lhe trespassavam as carnes, chicoteada, tendo os ossos dos dedos quebrados por pinças de ferro fundido, as unhas arrancadas e duramente interrogada por luminares da Inquisição, até confessar que realmente transformara-se em corvo e voara do Brasil em direção às Índias, em busca do marido da outra mulher.
Se confessasse, seria condenada à morrer na fogueira, e se morresse durante o interrogatório, teria igualmente queimado o seu corpo.
Se não confessasse, era certa a tortura, até fazê-lo.


Mas como poderia sóror Maria do Rosário provar que a acusação que lhe fora imputada era falsa?
A lei canônica dizia: além de Deus ou o Diabo ninguém pode locomover-se voando através do ar.
A não ser, é claro, que houvesse pactuado com o Demônio.
Ou seja, era crença da Inquisição que alguém que houvesse pactuado com o Diabo, vendendo a alma, poderia transformar-se em corvo e voar.
Ou, falseando, alguém que houvesse pactuado com o Diabo não poderia voar, nem se transformar em corvo.
Nem uma, nem outra coisa poderia ser provada empiricamente.
Talvez atirando sóror Maria do Rosário do alto de uma torre e observando para ver se ela voava ou não.
Na pior das hipóteses era uma tautologia: nem a Inquisição podia provar que ela voara, nem ela teria condições de mostrar que não voara e nem seria capaz de voar.
Por outro lado, era acusada de pactuar com o demônio, ou seja, havia vendido a alma.
Porém como poderiam as mulheres negociar as almas com o demônio, em pactos diabólicos, se Santo Agostinho provara, decididamente, que as mulheres não possuíam alma?
Por sua vez, o respeitado São Tomás de Aquino apresentara argumentos suficientes para recomendar que as mulheres fossem tratadas como escravas..

“... a mulher está submetida ao homem pela fraqueza de seu espírito e de seu corpo...”

O assunto foi levado mais longe durante o século doze:

“O homem, mas não a mulher, é feito à imagem e à semelhança de Deus. Dai resulta claramente que as mulheres devem ser submetidas a seus maridos e devem ser como escravas...”

Porém as fogueiras da Santa Inquisição, ao queimar mulheres que por ventura houvessem feito pacto com Satanás, vinha confirmar a existência da alma!
A alma que elas tinham negociado!
Ao mesmo tempo carimbavam a certeza do livre-arbítrio, que as levava a agir como agiam, afastando-as da condição de escravas do homem.
Na verdade, o âmago da questão não era esse.
Tratava de milhares de mulheres, mães, esposas, irmãs e filhas que esperavam notícias dos seus homens, maridos, pais, irmãos ou namorados que tinham embarcado em busca do desconhecido e que, anos depois, ainda não haviam dado notícia de seus paradeiros.
O mais provável é que estivessem mortos.
Ou não?
Como poderia a esposa, já desesperançada, lançar-se na aventura de um novo amor, e os havia, sem a certeza de que seu marido não emergiria das águas salgadas para reclamar o lugar que lhe cabia por direito?
Note, amigo leitor: não havia telegrama, nem radio, nem televisão, nem pombo-correio capazes de trazer notícias de lugares tão longínquos e na mais das vezes, desconhecidos.
A solidariedade feminina manifestada através dos feitiços, adivinhações e sortilégios, por mulheres sensíveis que percebiam a aflição e o desespero de suas amigas e vizinhas resultou na mais implacável e intolerante perseguição religiosa jamais intentada em todos os tempos.
Eram mulheres desamparadas, solitárias e confusas as vítimas da Inquisição, que as vendo desprotegidas de seus homens, queimavam-nas em fogueiras e acrescentavam ao patrimônio da igreja e dos inquisidores as pobres casas e terras agrestes.
A prática foi combatida pelo padre Antônio Vieira, um brasileiro que sofreu, mais tarde, duro golpe aplicado contra ele pela própria Inquisição.

É bem verdade que a tradição popular em diversas regiões da Europa atribuía, muitas vezes, às velhas senhoras que viviam sozinhas, a pecha de bruxas.
Feiticeiras, em Portugal, streghe, na Itália, sorcières, na França, e assim por diante.
Acreditava-se piamente que elas tinham por objetivo sugar o sangue das criancinhas, provocando-lhes a morte e eram dotadas de poderes estranhos, e estas crenças comuns no sobrenatural forneciam ampla base de operações para os Tribunais de Inquisição, justificando-os diante da opinião pública.
A ideologia popular da bruxaria certamente influenciou e foi influenciada por modelos aceitos pelas classes dominantes (laicas e eclesiásticas) durante a mobilização coletiva contra o “mal”, ocorrida na época da Inquisição, denominada “caça as bruxas”.

Geralmente as histórias narradas sobre as bruxas não fluem da observação direta do narrador, mas provém de uma série de episódios referentes ao âmbito familiar ou das amizades.
Assim, falava-se muito sobre o vôo noturno das bruxas, por si mesmas ou utilizando vassouras ou cavalos deixados nos estábulos como veículos para suas locomoções aéreas.
As bruxas podiam, igualmente, transformar-se em animais, durante a noite.
Outro ponto importante freqüentemente abordado era sobre a descoberta, por um membro masculino da família, que uma das mulheres, insuspeita, membro do grupo familial, era na verdade uma bruxa.
Podia muito bem ser a cunhada.
Estranha atração sexual pelas cunhadas, que por tortuosos caminhos levava os homens a denunciá-las a Santa Inquisição, imputando-lhes a pecha de feiticeiras!
Horrenda compulsão quando examinada à luz do terror demonstrado pelos grandes inquisidores diante da frase de um deles ao seu par:

“- Eu a condenei porque seus olhos destilam todos os perigos de amor e sortilégios! É a verdadeira tentação do demônio! Observe!”

Por outro lado, durante os séculos focalizados, era grande a mortalidade infantil provocada certamente por causas naturais, como a desnutrição decorrente da fome e da miséria imperante.
Entretanto aceitar a causa da morte como natural em razão dos pais serem incapazes de melhorar as condições de vida da família, era dar um golpe no sistema de segurança psicológica da comunidade.
Era mais confortável para as mentes culpadas aceitar o horizonte mágico no qual achava-se inserida a crença na bruxaria, procedimento que certamente permitia ao indivíduo subtrair-se às crises psicológicas e morais decorrentes dos prematuros falecimentos.
Procurava-se, sempre, no pequenino cadáver, mostras ou sinais de vampirismo.
E o procedimento alimentava e se justificava cada vez mais nas crenças em tais criaturas malignas.
Aceita a realidade da bruxa, aceitava-se igualmente o feitiço, o mau-olhado, o encantamento.
Crenças mágicas e religiosas que ainda nos dias de hoje, dominados pelo racionalismo, continuam a manifestar notável vitalidade e um profundo enraizamento.
Entre tantas outras privações, colocá-las ao alcance da Inquisição punitiva foi o legado que o marinheiro deixou para sua família, enquanto em toscas embarcações enfrentava a fúria de Bóreas e abria para os países que mantinham frotas desbravadoras o caminho para imensas fortunas em ouro, prata e novas terras.
Entretanto o furor inquisitório voltava-se, inegavelmente, contra os judeus e os hereges.
Em Portugal ficou célebre a fogueira que queimou o dramaturgo Antônio José da Silva, o judeu.
A Inquisição do século XVI derivou dos tribunais religiosos estabelecidos em certos países que durante a Idade Média perseguiam e condenavam os hereges..
O concílio de Verona (1183) estabeleceu as bases da Inquisição ao ordenar aos bispos lombardos a entrega à justiça dos heréticos que recusassem conversão.
Tornou-se instituição poderosa na Itália, Espanha e em Portugal.
O caso mais grave de desrespeito aos direitos humanos deu-se em Veneza, quando o Tribunal Eclesiástico da Inquisição transformou-se em Tribunal da Inquisição de Estado, composto por
três membros que tinham direito de vida e de morte sobre qualquer cidadão.

Saindo desse período sombrio, iremos comemorar, em 8 de março, as conquistas femininas já alcançadas, e almejar novas e alentadas realizações daqui para frente.

Larry Coutinho

Referências para saber mais: 1. Souza, Laura de Mello e - O Diabo e a Terra de Santa Cruz - Ed. Companhia das Letras 1966. 2. Mello, Pedro Homem de - Danças Portuguesas. Ed. Lello & Irmão - Porto -1962. 3. Kramer, Heinrick e Sprenger, Jaconus - Malleus Maleficarum (Manual de Caça às Bruxas) Ed. Planeta - dezembro de 1976 - São Paulo. 4. Skocic, Veridiana Aderaldo - Cultura popular e práticas mágicas - O exemplo da Itália. UFRJ.