quarta-feira, 28 de julho de 2010

O Teatro Municipal vai fazer 100 anos - Crônicas da cidade plural

Noites e manhãs no Teatro Municipal de São Paulo


Um belo dia o meu sogro por artes do então Prefeito Adhemar de Barros acordou Secretário Municipal da Cultura.
Pensei que o fato em nada modificaria minha rotineira vidinha de recém casado, trabalhador da indústria automobilística.
Ledo engano!
Provindo de plantadores de café no oeste paulista - até mesmo um município tomou o nome da família, adotando a pudica adição de um nópolis no final - ele participara, no início do século vinte, a partir de 1903, da campanha pela construção do Teatro Municipal de São Paulo e contribuíra com dinheiro próprio para ajudar a trazer da Europa, nas festas de inauguração de 1911, o barítono Titta Ruffo e outras divas de bel-canto, que se esmeraram na ópera Hamlet, de Ambroise Thomas.
E eis que, quarenta anos depois, com uma penada do Prefeito e a correspondente publicação no Diário Oficial, a Secretaria da Cultura e por extensão o Teatro Municipal de São Paulo caíram inteirinhos nas unhas!
Arregaçou as mangas e começou a trabalhar.
Enquanto isso, os funcionários do Teatro limpavam e poliam o belo camarote do Secretário da Cultura, só ultrapassado em luxo pelo camarote do lado direito, mais suntuoso, que era o do Prefeito.
Como o Adhemar foi prefeito de São Paulo entre 8 de abril de 1957 e 7 de abril de 1961, fica determinado o tempo da ação desta crônica.
Na época a cidade de São Paulo vivia raro esplendor cultural.
A Biblioteca Mario de Andrade não só recebeu este nome como também foi reformada neste período.
O teatro paulista estava no auge, com o TBC e outros cometimentos de envergadura. Grandes atores, cenógrafos, diretores, iluminadores surgiam do nada.
A quarta Bienal de São Paulo, de 1957, exibia e mostrava para os paulistanos a pintura de pingos e borrões de Jackson Pollock.
Em 1959, houve a quinta Bienal, e a ofensiva tachista.
Em 1961, já sob o comando da Fundação Bienal, houve uma retrospectiva de Alfredo Volpi, pois aumentava a participação dos brasileiros na mostra, que tinha como estrela, naquele ano, Kurt Schwitters.
Entre 1950 e 1960, o número de assentos disponíveis nos cinemas da cidade de São Paulo cresceu quarenta e dois por cento.

Enquanto isso, na Secretaria Municipal da Cultura, o endiabrado do meu sogro conseguia subvenção para realizar a temporada lírica do Teatro Municipal, uma espécie de tradição paulistana.
Pois a São Paulo da época congregava uma absurda quantidade de imigrantes europeus, desdobrados em grandes famílias binacionais, ou seja, ítalo-brasileiros, franco-brasileiros, luso-brasileiros, etcétera e tal.
A preponderante população italiana andava nostálgica da ópera napolitana, lembrando constantemente de Alessandro Scarlatte e de Joseph Haydn, que apesar da origem austríaca foi o principal compositor da escola napolitana de ópera (vinte e seis óperas que não são mais encenadas).
No início do século vinte, a sociedade paulista tinha formação patriarcal-rural, vocacionada para a cultura européia e, por extensão, à ópera.
Assim, a ópera, que justificou e impulsionou a construção do Teatro Municipal da cidade, era prioridade absoluta.
Vindo de certa batalha política entre o Estado e o Município, o Teatro Municipal foi fechado para “reformas” em 1954, deixando o Balé do Quarto Centenário sem ter onde se apresentar.
Reaberto em 1955, dois anos depois o Municipal ainda estava em obras e os recursos eram escassos.
Nada que fosse obstáculo para o afã dinâmico do novo Secretário da Cultura.
Os inimigos davam de ombros e afirmavam:
-Vassoura nova varre bem!
O novo Secretário, varrendo bem, convenceu o Prefeito a emitir títulos da divida pública e conseguiu o dinheiro necessário para concluir a reforma do Teatro Municipal.
Percebendo que o Teatro passara por reformas porque era mal cuidado e sem manutenção decente, fez o que estava ao seu alcance: criou o cargo de Encarregado Geral dos Equipamentos.
.Enquanto tratava com a Lina Bo Bardi do projeto e da construção do novo Museu de Arte de São Paulo (Embaixador Assis Chateaubriand), em cima das ruínas do velho Trianon, o Secretário Municipal da Cultura tratava da temporada lírica.
E foi aí que ele me pegou.

Anos antes, em 1955 eu namorava minha futura mulher durante as apresentações de Traviata, Aida e La Boheme, e éramos peões acomodados nas torrinhas do Teatro Municipal, porque os recursos pessoais, escassos, não permitiam poltronas mais aprazíveis.
Também freqüentávamos o Teatro de Cultura Artística, onde eu era sócio e não pagávamos nada.
O cego e genial Ruben Varga no violino, Fritz Iank no piano, destrinchando as trinta e duas sonatas de Beethoven, Andrés Segovia ao violão, mostrando como se toca...e outros iluminados, tipo Yehudi Menuhin, o violinista norte americano...
As soirées no Teatro de Cultura Artística levavam, fatalmente, ao jantar no Giggeto, nas proximidades.
Em 1958, quando nasceu o nosso primeiro filho, e já sob o domínio do sogro-Secretário, cumprindo a agenda e consultando a coleção de folders referentes ao Teatro Municipal de São Paulo, posso informar: foram sete óperas completas, pouco conhecidas, que assistíamos em silêncio, ao abrigo do camarote do Secretário Municipal da Cultura.
Em 1960 as óperas foram também sete: Miles Gloriosus - Bertoldo Acorte - La Gistizia - e, mais conhecidas, Rigoleto - Lucia de Lammermoor - La Traviata e La Boheme.
Porém não só de óperas vivia o Teatro Municipal.
Esteve por lá a Comédie Française, que fazendo juz ao apelido de Maison de Molière, apresentou uma série de obras do dramaturgo.
Assistimos também ótimas apresentações de balé.
Numa delas- talvez a do Bolshoi - pela primeira vez percebemos um certo movimento no camarote do lado, o do Prefeito, que habitualmente permanecia deserto.
Era a bailarina Marilu Torres (hoje festejada jornalista), que, ao me ver no Teatro, arregalou os lindos olhos (os quais, normalmente, só fitavam o Newton Travesso - ó ciúme miserável que me ataca de vez em quando!) e perguntou, espantada: - O que é que você está fazendo aqui?
Ela estava representando o Prefeito.
Ela tinha sido colega de classe. No Colégio Bandeirantes.
Mas o que queria mesmo era ver ao balé.

Os anos passavam e meu sogro-Secretário ia muito bem.
Eu e a minha mulher assistíamos tudo o que fosse possível assistir, sabendo que eram oportunidades raras.
Havia também algum exibicionismo e um certo gosto pela monumentalidade.
Não lembro quando, e se era um espetáculo ou a cerimônia de entrega de prêmios, ou coisa que o valha. O fato é que a praça Ramos de Azevedo foi inteiramente esvaziada e cercada por cordas. Na escadaria do Teatro, a Banda, talvez da Guarda Civil, em uniforme de gala.
Entrava-se pela calçada do Mappin, onde havia uma pequena passagem entre as cordas.
Mostramos os pergaminhos, pois assim eram os convites pessoais e intransferíveis e enveredamos por ali.
De repente, vimo-nos sós no meio da praça vazia.
Então e imediatamente a Banda atacou o Hino Nacional Brasileiro que só cessou quando entramos no Teatro.
Foi gloriosa a travessia dos cento e cinqüenta metros da praça se tanto, culminando com a deliberadamente vagarosa subidas dos degraus...exibição para a enorme platéia popular que se comprimia além das cordas...
Outro casal de convidados passou pelas cordas e a Banda atacou novamente...
Estava fazendo isso com todos os convidados que atravessavam a praça em demanda ao Municipal.


Entretanto, a agitação não acabava no fim dos espetáculos.
Muitas vezes prolongava-se noite adentro, em restaurantes, bares ou boates.
Durante as apresentações, o camarote do Secretário era invadido por atores, músicos, maestros, dançarinos, escritores, poetas, empresários... enfim por aqueles, artistas ou não, que dependiam, para viver, de subvenções municipais.
Então a reunião festiva se prolongava além do espetáculo.


Aquela “farra” cultural, que já durava vários anos, estava minando minha atividade profissional.
Afinal, morando no Brooklin, eu acordava todos os dias às cinco horas da manhã para, às seis, pegar o ônibus da empresa, que passava pela avenida Santo Amaro.
Depois, oito ou dez horas de trabalho duro.
Reservei os sábados, domingos e feriados para dormir até mais tarde.
Então, num ato de inaudita crueldade para com o genro, meu sogro-Secretário promoveu e assinou contrato com emissora de radio e televisão e certa fábrica de automóveis, criando os Concertos Matinais, que transformaram minhas manhãs de domingo, a partir de maio de mil novecentos e cinqüenta e nove, numa espécie de gincana com a finalidade de afastar todos os fatores que pudessem impedir nossa ida ao Municipal, onde o confortável camarote do Secretário esperava pela família.
E nossa ausência não era permitida.
Da primeira apresentação até a última, quatro anos depois, foram quase duzentos e cinqüenta audições dominicais, todas elas transmitidas pelas Emissoras Associadas para o Brasil e para o mundo, através do radio e da TV.
Extraordinário trabalho realizado pela Orquestra Sinfônica Municipal, o Coral Municipal, e os cantores-solistas que ajudaram a gravar o até então inédito em terras brasileiras poema-sinfônico “Colombo”, do Carlos Gomes. E também pelos maestros Armando Belardi, Camargo Guarnieri, Edoardo de Guarnieri, Souza Lima e Nelson Freire.
Terminados os Concertos Matinais, ganhei da empresa patrocinadora um álbum com três discos LP, onde estavam gravados os melhores momentos daquela iniciativa tão brilhante.


Ainda em 1957 e maestro Heitor Villa Lobos recebeu o título de cidadão paulistano.
Tivemos a honra de assistir, ao lado do compositor, no Teatro Municipal de São Paulo, a apresentação da sua Décima Sinfonia sob a regência do maestro Souza Lima.
Privilégio para os genros de sogros-Secretários!

Em 7 de abril de 1961, acabou o governo do Adhemar de Barros.
Meu sogro apanhou o chapéu e foi para casa.
Acabaram-se as delícias do camarote do Secretário, as entradas grátis no Municipal...
Dez anos depois foi a minha vez de brincar de Secretário.
Porém o ramo era outro. O único convite que recebemos, eu e minha mulher, foi para assistirmos, no Teatro Municipal, uma apresentação de orquestra de tangos que não tocava tangos.
Fomos, em memória dos velhos tempos, e também porque ninguém aceitou o repasse dos convites, mesmo de graça.
Percebemos que alguma coisa tinha sido mal avaliada, pois havia gente sentada até nos corredores.
E foi um deslumbramento.
Saímos do Teatro Municipal em êxtase, minha mulher gritando, como louca, os versos da ...“Balada para um loco”!
Então procuramos as casas de discos ainda abertas, e compramos tudo o que havia de Astor Piazzola e de Amelita Baltar.
Com uma saudade danada dos tempos do sogro-Secretário.
Que deve estar no céu, ensinando música erudita para os anjos, desconsolado por não ter sido dele a idéia de levar a Elizeth Cardoso, que vinha do quinto LP da série Meiga Elizeth, para interpretar as Bachianas Brasileiras número 5, do Heitor Villa Lobos numa soirée do Teatro Municipal de São Paulo que entrou para a história.

Na década de oitenta eu prestava consultoria para uma empresa construtora.
E, numa sexta-feira de chopes descobri que um dos engenheiros que trabalhavam para a firma, também era um dos responsáveis pela grande reforma que se faria no Teatro Municipal.
Então eu falei dos subterrâneos do Teatro, que eu havia percorrido em certa ocasião.
Na segunda feira o engenheiro estava eufórico.
Havia entrado nos corredores enterrados e o cenário despertou-lhe a criatividade.
Tempos depois me disse que um grupo de arquitetos trabalhava ali, e os subterrâneos seriam aproveitados e entregues ao público.
Confesso que não voltei ao Municipal para ver o resultado.
De qualquer maneira, o ano que vem o Teatro Municipal faz cem anos.
Parabéns para ele!
Tenho certeza que a atual reforma ficará pronta para a festa de aniversário!

Larry Coutinho ( foto e texto)

E,por falar em pizza...Crônicas da cidade plural

Eu acho que as Colas chegaram antes.
Sei que Getúlio Vargas assinou o decreto em 1939 modificando a permissão do uso de aditivos químicos em refrigerantes
Para mim a bebida surgiu num belo dia de sol, hora do recreio, quando uma multidão de pequenos seres confusos corria de um lado para outro no grande pátio do Dante Alighieri e foi organizada rapidamente em longas filas à espera cada um da sua pequena garrafa (quente) do refresco desconhecido.
De graça!
Final dos anos quarenta, com certeza.
E o irreverente João Cardoso proclamando em tom canalha:
-Uma Cola bem gelada .... faz efeito na privada!
Quanto a pizza, recorro ao Frederico Branco, em seu Postais Paulistas.
Para ele, não interessa como e quando a pizza chegou a São Paulo.
Bairrista, fixa-se na data em que conheceu a redonda (que hoje também pode ser quadrada) no espigão da avenida Paulista: 1943.
Mais exatamente na praça Oswaldo Cruz, no mesmo lugar onde, anos depois, foi construída a já falecida loja da Sears Roebuck e agita, hoje, um Shopping muito freqüentado.
Pois ali, uma faixa alardeava a inauguração da Pizzeria Surpreza!
E, na mesa que ocupou, viu-se diante do aroma “feito de azeite de oliveira, massa bem assada, queijo fundido no forno, orégano e uma ameaça de alho”.
A pizza de mozzarella! É claro, acompanhada por algumas garrafas de Hamburguesa gelada.
Entre as três marcas que poderia escolher: Hamburguesa, Brahma ou a marca barbante ... a que amarrava a rolha com barbante para não explodir, então já domada pela chapinha de metal.
Dali para o Paulino escorregar Pamplona abaixo, foi um minuto. Precisamente três anos.
Meu pai, amazonense afeito à culinária do norte, encantou-se com o aliche do Paulino.
Era aliche ou mozzarella. Só.
Eu detestava aquele peixinho espinhento, salgado e estranho, artisticamente disposto sobre a camada fina de molho de tomate.
Minha mãe, quando era ela a pedir, recomendava meio-a-meio, tímida demais para pedir: mezzo-a-mezzo.
Porém meu pai comandava quase sempre, e então era só aliche.

Cresci, casei e mudei para o Brooklin.
Onde descobri a pizzeria Esperanza e a pizza Margarita, uma sublimação do pesto, acrescentando aos aromas lembrados pelo Frederico Branco o suave olor do manjericão.
Uma sala quadrada, na avenida Morumbi, não muito grande, com seis ou sete pequenas mesas, um balcão e uma minúscula cozinha.
Parede de vidro fosco separava o salão da calçada.
E, maravilha das maravilhas, um pão de lingüiça divino!
O pão sempre chegava antes da pizza, que aceitávamos já sem fome, ao contemplar os maravilhoso “triângulos dourados” migrarem para os nossos pratos.
Os convivas variavam, porém a velha piada era sempre a mesma:
- Garçom, não corte em oito pedaços. Corte em seis, porque já estamos sem fome!
E tome azeite por cima!
Tempos depois minha filha mais velha casou com um carioca.
Uma bela noite, a família inteira na pizzaria!
Então, o máximo da heresia, ação que condenava imediatamente para a fogueira sem passar pelo Santo Oficio nem nada: o novo membro da família, carioca de nascimento, pediu o Ketchup, e derramou abundantemente sobre a Margarita!
Meu neto mais velho nasceu e cresceu praticamente sem conhecer o pai. Um ou outro telefonema e olhe lá.
Casamento desfeito, o ex-genro voltou para o Rio de Janeiro, e não viu o filho crescer.
Pois bem.
Noutra bela noite, bem distante no tempo da primeira, reunidos em família, meu neto, com oito anos de idade, ao ser servido do seu triângulo dourado pediu... o Ketchup! Que derramou abundantemente sobre a Margarita. Enormes e gordas manchas vermelhas sobre o dourado da pizza. Diante do profundo silêncio familial!
Freud explica?
O resto a respeito das pizzas todo mundo sabe mais e muito melhor do que eu.

Larry Coutinho

sábado, 24 de julho de 2010

A rua Direita e vizinhanças ( Othon Palace Hotel) - Crônicas da cidade plural


A rua Direita era área dos negros, nas noites de domingos e feriados.
Durante os dias de semana desenvolvia um comércio popular, nas Lojas Americanas, que varavam o quarteirão e tinha duas entradas, uma em cada rua.
Na esquina da praça do Patriarca, a Exposição, uma loja que proclamava:
“- Basta ser um rapaz direito para ter crédito na Exposição”.
Em outra esquina da mesma praça, desta vez com a rua São Bento, ficava a Casa Fretin, com seu minúsculo elevador de portas pantográficas.
Vendia óculos, próteses, e fundas para hérnias, entre outros estranhos artigos.
Na praça do Patriarca, a Casa São Nicolau onde, no Natal, eu esfregava o nariz nas vitrines, correndo de uma ilusão para outra, feita brinquedo...
Mais adiante, na São Bento, a Botica Ao Veado de Ouro, cuja principal atração era a escultura dourada de um veado.
Aviavam as receitas dos médicos antigos, daqueles que não gostavam de prescrever remédios industrializados, que se compravam prontos nas farmácias.
Na Libero Badaró, também esquina com a praça do Patriarca, o novo hotel Othon, onde os novos casais passavam a noite da lua de mel.
Aliás, um jovem casal amigo ocupou um dos quartos do hotel, na sua primeira noite.
A noivinha, nervosa - época em que as noivinhas ficavam nervosas - ao usar o banheiro, notou a falta do papel higiênico.
Usou o telefone para reclamar com a portaria:
- Por favor, meu banheiro não está completo!
Três minutos depois bateram à porta.
Um rapaz uniformizado trazendo... um secador de cabelos!

Larry Coutinho ( foto e texto)

Relógio e o chá no Mappin - Crônicas da cidade plural

(Foto em junho de 2010)
Na década de cinqüenta, São Paulo completou quatrocentos anos.
Não existiam ainda os shopping's e ao nosso alcance havia apenas um supermercado, o Peg-Pag, na praça Gastão Liberal Pinto, encruzilhada tripla, ponto de convergência da avenida Brigadeiro Luís Antônio, São Gabriel e avenida Santo Amaro.
Todas as lojas chamadas finas, enfim, toda a vida elegante ficava no centro velho.
A Biblioteca Municipal, as livrarias, o Mappin da praça Ramos de Azevedo, onde as senhoras tomavam chá no salão do quarto ou quinto andar...
Às vezes um ou outro homem bem vestido e cheiroso costumava freqüentar o salão, e era sempre alvo de olhadelas e de cochichos.
A causadora da invasão masculina (sempre havia uma) não conseguia escapar dos mexericos.
Na esquina da Xavier de Toledo, o relógio do Mappin.
Por ele marquei muitos encontros em minha vida.
Ainda está lá, e não funciona mais.
Antes, o Mappin ficava na Praça do Patriarca.
E a Livraria Jaraguá, na Marconi, também mantinha uma sala de chá, nos fundos.

Larry Coutinho( foto e texto)

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Escola Normal Caetano de Campos - Crônicas da Cidade Plural

Escola Normal Caetano de Campos - 1894
( primeira escola normal do Estado de São Paulo)

Nesse prédio projetado pelo arquiteto Ramos de Azevedo foram formadas as professorinhas que modificaram todo o sistema educacional brasileiro. Queridas e respeitadas pelo povo receberam uma homenagem musical, na voz de Francisco Alves, que foi grande sucesso na época:


"Vestida de azul e branco
Trazendo um sorriso franco
No rostinho encantador

Minha linda normalista
Rapidamente conquista
Meu coração sem amor"

Larry Coutinho ( texto e foto)

Ladeira da Memória - Crônicas da Cidade Plural

Obelisco no Largo da Memória monumento mais antigo de São Paulo - 1814
( texto em breve)
Foto Larry Coutinho

O Junker JU - 52 - Crônicas da Cidade Plural



As pessoas gostam de contar como chegaram a São Paulo. A pé, de carro, de caminhão, nos trens que ainda existiam, em navios “Ita”, subindo a serra de Santos até mesmo em diligências (em breve tratarei das diligencias e serviços de aluguel de cavalos que ligavam São Paulo a Santos). Minha família chegou voando em avião. Em 1939 ou 1940 migramos de Curitiba para São Paulo.
A Bordo do Junker JU-52 .
Ao entrar no avião, a primeira impressão ficava por conta do desnível acentuado: as duas rodas dianteiras eram grandes e altas, e a única roda traseira, muito pequena, provocava forte inclinação do conjunto.
Os passageiros escalavam o curto e estreito corredor e procuravam assento nas poucas poltronas disponíveis.
Tratava-se de monoplano, o que parecia ser a tendência dos aviões construídos na época.
Ligados os três motores o barulho era infernal.
Os passageiros recebiam pequenos tufos de algodão para colocar nos ouvidos e goma de mascar.
Tão logo acionadas as máquinas o avião começava a rodar, num processo que só seria interrompido no ponto de chegada, sem que, aparentemente, os pilotos pudessem fazer alguma coisa para controlar aquele movimento para frente e para cima, a não ser reduzindo ou desligando a força dos motores.

Larry Coutinho

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Leite, açúcar e canela - Crônicas da Cidade Plural


Quatro cabras, dois cabritinhos e um bode com sininhos - que os europeus chamam de cowbell - pendurados no pescoço.
Um homem de meia-idade tangendo a manada, boné de cartolina amarela, da Caracu, e guarda pó branco, nem sempre muito limpo.
As crianças traziam os copos de dentro da casa.
Existiam os recipientes especiais, só para a ocasião.
Eu tinha um, de prata, com o meu nome gravado, presente da madrinha.
Leite de cabra tirado na hora, temperado ou não com açúcar e canela, atendendo ao desejo do freguês.
Alguns tostões.
O indisfarçável cheiro dos animais era de graça.
Eu nunca soube qual a relação entre a cerveja preta Caracú e o leite.
Larry Coutinho

Doces Sonhos - Crônicas da Cidade Plural

Alguns assustam, outros acalmam, outros aterrorizam...
Porém não é desses sonhos que eu falo.
Falo de outros sonhos, doces feitos de farinha, gordura, não sei se ovos, açúcar de confeiteiro, creme de baunilha ou de goiabada derretida, e competente fritura ou assadura.
Ainda desvendarei, um dia, os segredos da receita...
O resultado final é uma grande bola de massa macia, amarronzada e ligeiramente úmida de gordura. E recoberta por açúcar de confeiteiro.
Um pouco de goiabada derretida ou de creme de baunilha é ardilosamente colocado no meio da massa, e um dos encantos do doce é permitir ao paladar desvendar, pouco a pouco, a verdadeira natureza do recheio.
Sempre que eu ia a Curitiba, procurava as velhas e boas doceiras e os sonhos paranaenses.
Minha mulher disse-me que, em São Paulo, ela saía do Sedes Sapientiae, onde estudava, e caminhava a pé até o centro da cidade, para comer sonhos na Doceira Dulca.
Para ela não existia essa história de ir descobrindo os sabores dos recheios aos poucos.
Ela pedia sonho de goiabada, e ponto final!

Porém, como nada é perfeito, alguns doceiros modernos, mestres na perversa arte da invenção, não ocultam mais os recheios dentro dos doces.
Não há nada que não seja possível piorar!
Enfiam uma faca larga abrindo um buraco na massa, onde metem os cremes de qualquer jeito, e eles ficam aparentes, escorrendo lugubremente daquela ferida medonha.
E todos os sonhos empilhados em prateleiras próximas à caixa registradora... serão agarrados com a mesma mão que manuseia o dinheiro?
Manobra comercial só comparável aos efeitos perniciosos do liquidificador quando aplicado ao recheio do apffelstrudel. Transformando os sólidos representados pelos macios pedacinhos de maçã e pelas uvas passas doces, levemente ácidas e sem caroços, em um líquido amarelado e sem personalidade.
Como na vida real, conseguiram transformar os sonhos em pesadelos!

Ingredientes:
500 g farinha de trigo
50 g fermento biológico fresco
100 g açúcar
100 g manteiga (ou margarina)
1 colher (café) de sal
3 ovos
1 copo de água
1 pitada de baunilha

Recheio de baunilha:
Ingredientes:
1/2 litro de leite
250 g de açúcar
75 g de farinha de trigo
4 gemas
1 pitada de baunilha

Modo de preparo:
Complexo

Dicas de preparo:
Essenciais
Pode ser assado ou frito. Voltarei ao assunto com a receita completa e bem explicada.

Larry Coutinho

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Livraria Jaraguá - Crônicas da Cidade Plural


A Livraria Jaraguá ocupava a loja onde hoje fica a papelaria

Livraria Jaraguá
Rua Marconi, 54


Pertencia à família Mesquita (Alfredo Mesquita e o sócio Roberto Meira).
Inaugurada em 1942, oferecia um salão de chá aos intelectuais que a freqüentavam.
Também trabalhava com discos.
Foi vendida no final dos anos 50.
Comprei ali o meu primeiro exemplar da “Critica da Razão Pura e Prolegomenos de toda a Metafísica Futura”, do Emmanuel Kant.
O segundo exemplar, em castelhano, depois de constatado o desaparecimento do primeiro, eu comprei em San Carlo de Bariloche.
Cada vez que eu entrava na Livraria Jaraguá, procurava espiar o salão de chá, nos fundos da loja.
Diziam que alguns dos mais famosos escritores costumavam aparecer por lá.
Porém, ou porque a minha coragem fosse pouca ou ainda porque havia um certo ar de “não venha se não for convidado”, nunca entrei no salão de chá.
Certa vez, quando estávamos planejando o jornal “Dante”, para ser introduzido e distribuído em nosso colégio, marquei encontro com o Luiz e o Mino.
Sairíamos dali em busca de uma entrevista com o Francisco Pati, diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo.
Esperei junto ao balcão.
Os dois irmãos surgiram, vindos do salão de chá.
Estavam lá, conversando com o pai, importante redator do jornal O Estado de São Paulo.
Foi o mais perto que eu consegui chegar do salão de chá da Livraria Jaraguá.

Larry Coutinho ( foto e texto)

terça-feira, 13 de julho de 2010

Edifício Joelma - Crônicas da Cidade Plural




O edifício Joelma
(Atual Edifício Praça da Bandeira)
Avenida Nove de Julho, 225


Este belo edifício dourado pelo pôr-do-sol do outono paulistano tem lá a sua história.
Dependendo da crença e do conhecimento do observador os primórdios podem remontar aos anos de graça de 1948, de 1974 ou a um período indígena pré-cabraliano.
Vou começar pela última hipótese.
O indiozinho Diehambi teria, no máximo, cinco anos de idade, quando viu a galinha do mato pela primeira vez, a uns dois quilômetros distante da aldeia, na beirada do riacho.
O pássaro saíra de trás de uma moita, atravessara a picada e sumira no mato denso, não sem antes se deter por alguns segundos e dar uma boa olhada no menino.
Diehambi contou para a mãe. A índia alarmou-se. Ali onde Diehambi estivera brincando era terra deserta. Nem sequer os pássaros a sobrevoavam. Silêncio quebrado apenas pelo marulhar do riacho maldito. Todos, humanos e animais, evitavam a região e o fato de haver por lá uma galinha do mato fez com que a índia procurasse o velho Cutaria.
O índio velho escutou a narrativa, nada disse à mulher. Ou antes, assegurou que dali em diante ele cuidaria do assunto.
No dia seguinte, Cutaria chamou três rapazes, saiu com eles para o mato, descansou numa clareira e então falou.
- Eu quero que vocês procurem caçar no riacho...
-Mas lá não tem caça! - ponderou um dos rapazes - até aves e peixes evitam o lugar!
- Por isso mesmo! O menino Diehambi esteve brincando por lá e viu uma galinha do mato, atravessando a picada... eu quero que vocês observem as matas em volta do riacho. Procurem pelo rato soia, por algum morcego extraviado, ou pelo macaco jurupá...
- São algumas das formas viventes que a alma-que-corre costuma assumir! - exclamou o mais velho dos rapazes - iremos ver o Anhangá?
- Não! - respondeu Cutaria. Anhangá é invisível aos olhos dos mortais. Vocês somente verão as formas dos bichos assumidas pelo Anhangá.
- Se encontrarmos o Anhangá nós deveremos matá-lo?
-Não. Procurem atrair o animal para a aldeia. Mansamente, sem agressão.
- O que irá acontecer conosco?
- Vocês terão dores no corpo. Verão uma das formas do Anhangá. E ninguém nunca escapou disso. A cabeça irá doer muito, sofrerão alucinações, panema e febre. Não tentem caçar os animais. Se o fizerem, o Anhangá assumira a forma de um grande veado branco, com olhos de fogo e uma cruz no meio da testa. Então atacará, expelindo fogo pelos olhos, com fúria incontrolável. Vocês morrerão queimados pelo fogo do olhar do espírito invisível, antes mesmo de levarem a primeira chifrada...
Os três rapazes partiram para cumprirem a missão. Porém um deles procurou o padre Raposo, na última choça, no final da mata e contou o que estava acontecendo.
Nos dias seguintes o padre andou sessenta quilômetros até a beirada do mar onde morava o seu superior, e contou:
-Santíssimo mestre, o Diabo está de volta!
-Anhangá? - perguntou o superior.
-Anhangá!- confirmou o padre.

x x x

Nos primeiros tempos de colonização o riacho era também conhecido como Córrego das Almas. Para os indígenas, o rio era “um bebedouro de assombrações”. Água salobra que causava doenças.
-Anhangaba-Y! - proferiu o índio velho, impedindo o mais jovem de beber o mais jovem, sedento pelo esforço da caminhada.
- Aqui mora o demônio! - concordou o índio jovem - é o riacho do feitiço, da diabrura, do malefício... Anhangá!
- Sim - prosseguiu o mais velho - reino de Anhangá, o demônio, senhor das forças do mal....
E afastaram-se rapidamente, em busca de outros ambientes e de outras águas.
Já no século dezessete as águas eram usadas apenas para lavar objetos e para banhos.
Ninguém na colonial São Paulo atrevia-se a beber ou a utilizar para a cozinha aquelas águas amaldiçoadas, em volta das quais o centro velho da cidade expandia-se.

x x x

Num hediondo crime de morte, muitas vezes o enigma não é descobrir o assassino, mas sim qual a razão de uma matança sem sentido.
Completei doze anos de idade em 1948, quatrocentos anos depois daquele dia em que o indiozinho Diehambi descobriu a galinha do mato pela primeira vez, a uns dois quilômetros distante da aldeia, na beirada do riacho.
Na cidade que ainda era tranqüila, um acontecimento violento ocupou as manchetes dos jornais durante dias, talvez por semanas, e repercutiu durante muitos anos nas histórias paulistas: o famoso Crime do Poço.
Em minha cabeça, emergindo das brumas do passado, surge um dístico não identificado:

“Que lindo o poço
Parece um moço...”

Que diabo! De onde veio essa insanidade?
A verdade é que, no fim de outubro, o morador da casa na rua Santo Antonio, número cento e quatro, quase na esquina da avenida Nove de Julho, construiu no quintal um poço de cinco metros de profundidade alegando que ia montar uma fábrica de adubos e a água encanada não servia ao trabalho.
A obra foi feita em um dia por dois pedreiros que receberam dois mil cruzeiros pelo trabalho.
O morador profanava as terras e as águas do Anhangá!
Porém, na agitada metrópole que já se anunciava, certamente a galinha do mato, o insignificante rato soia, algum morcego extraviado, ou o macaco jurupá...e quem sabe, mesmo o veado branco com olhar de fogo e uma cruz no meio da testa não seriam encontrados facilmente. É possível que o Anhangá tenha assumido outras formas mais urbanas, ele que pode tudo.
O morador teve dores no corpo. A cabeça doeu muito, sofreu alucinações, panema e febre. Entretanto, como não chegou a ver o veado branco, escapou de morrer queimado e de levar a primeira chifrada.
Porém já estava contaminado pelo espírito do mal.

x x x

Inicio de novembro, mais precisamente, dia quatro.
Aproximava-se o Natal de mil novecentos e quarenta e oito.
A casa modesta que abrigava as três mulheres e o rapaz de vinte e seis anos, fora construida exatamente no local onde, quatrocentos anos atrás, o indiozinho Diehambi vira a galinha do mato pela primeira vez, a uns dois quilômetros distantes da aldeia. Na beirada do riacho.
No reino de Anhangá, no preciso diagnóstico do pagé Cutaria.
Da terra salobra o mal emergia em ondas invisíveis, porém poderosas.
Entre nove e dez horas do novo dia, o rapaz e sua irmã sentaram-se para tomar o café da manhã. A mãe servia a mesa, tranqüilamente.
Então, sem avisos nem preâmbulos, o rapaz cujo nome era Paulo matou a tiros a mãe, que trazia na bandeja o bule com o café e três pãesinhos franceses, e a irmã Maria Antonieta, entretida com o jornal matutino.
A irmã Cordélia foi morta ao chegar do trabalho para o almoço.
Paulo enrolou cada uma das três mulheres em panos pretos que ele comprara antecipadamente.
Sozinho, arrastou os três corpos para o poço, e lançou os cadáveres de ponta cabeça.
Durante a tarde e quase toda a noite Paulo trabalhou com a pá, atulhando o poço, que amanheceu totalmente coberto no dia seguinte.
Cordélia não voltara para trabalhar e por isso, à noitinha, um funcionário do escritório apareceu na casa da rua Santo Antonio, a procura de notícias da jovem.
-Cordélia viajou com a mãe e a irmã para visitar uma família no Paraná - informou Paulo ao funcionário.
No dia seguinte telefonou para a empresa e contou, choroso, que a mãe e as duas irmãs haviam perecido em um acidente de automóvel perto de Curitiba.
Desconfiado, o dono da empresa procurou a polícia.
Nenhuma prova do acidente foi encontrada e no final de novembro começaram as investigações.
A policia invadiu a casa da rua Santo Antonio, número cento e quatro e começou a abrir o poço.
Paulo pediu licença para ir ao banheiro e aí se suicidou com um tiro.
A mãe e as duas irmãs foram encontradas no poço, cobertas em mortalhas negras e sepultadas de cabeça para baixo.

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A proximidade do fim de semana animava os meus ossos cansados.
Era o dia primeiro de fevereiro de 1974, uma sexta-feira.
Passavam alguns minutos das nove horas da manhã e eu dirigia apressado pela avenida vinte e três de maio.
Queria chegar ao meu escritório na rua do Ouvidor, porém o trânsito não andava.
Finalmente andou, fiz a última curva antes de chegar ao Anhangabau e contemplei, horrorizado, a primeira das visões do inferno que eu teria naquele dia.
O Edifício Joelma ardia como uma tocha e percebi pontos negros que saltavam dos últimos pavimentos para a morte certa de encontro ao solo.
Dezenas de carros de polícia, de bombeiros, helicópteros que não se atreviam a sobrevoar as chamas, uma multidão calada e um guarda de trânsito que apitava alucinadamente, procurando livrar a passagem pelo vale do Anhangabau.

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Da janela do escritório eu procurava avisar pelo telefone aos policiais e bombeiros o que conseguia ver: - Tem um homem fora da janela do vigésimo andar! Está apoiado num ressalto de concreto e parece calmo. Esperem! Parece que tem gente na laje, no meio da fumaça...
- Não dá para fazer nada. Os dez ou doze primeiros andares são de garagem. É só até onde as escadas de incêndio conseguem chegar. Você está dizendo que tem gente na laje? Vou pedir auxilio à aeronáutica.
De fato, na laje do prédio algumas dezenas de pessoas corriam por entre as espessas nuvens de fumaça. As paredes laterais eram lambidas por imensas chamas compactas.
Meia hora depois se aproximou um grande helicóptero da aeronáutica.
Primeiro tentou jogar uma corda para o homem calmo apoiado num ressalto do vigésimo andar e já fora do prédio.
A longa corda não chegava.
O longo rotor não permitia aproximação mais efetiva.
Então o heróico piloto ousou.
Afastou um pouco o aparelho e subitamente investiu contra o prédio.
A longa corda afastou-se, depois voltou, em movimento pendular.
O homem fora da janela não pensou duas vezes.
Coberto por fagulhas de fogo, resultado das pontas dos rotores do helicóptero despedaçando-se no embate com o concreto ele atirou-se no espaço, agarrou a corda e assim mesmo, dependurado sobre o abismo, foi levado em vôo cuidadoso até o viaduto dona Paulina, mais ou menos próximo.
Minutos depois o helicóptero voltou e pairou alto sobre o prédio. Embaixo dele, as chamas da imensa fogueira. E o destemido piloto foi descendo, lentamente.
Gritos partiram do alto da laje. Um soldado desceu pela corda.
A longa corda foi usada inúmeras vezes para transportar vítimas da tragédia.
Animada pela salvação de alguns, a multidão gritava, inutilmente, para as pessoas não saltarem.

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Naquela manhã de fevereiro setecentos e cinqüenta pessoas trabalhavam nos diversos andares do Edifício Joelma.
Muitas delas não desfrutariam do fim de semana.
Os bombeiros acreditam que um aparelho de ar condicionado, no décimo segundo andar, entrou em curto-circuito e pegou fogo. As chamas passaram para as cortinas e atingiram as placas de plástico inflamável que cobriam o teto. Todo o material combustível nos outros escritório pegou fogo.
As 8h50 o incêndio, sem nenhum controle, tomou conta do edifício.
Imprudentemente o elevador do prédio foi utilizado.
Salvou inúmeras vítimas em diversas viagens.
Finalmente o carro parou, no vigésimo andar.
Mais tarde, no rescaldo, foram achados dentro dele treze corpos carbonizados.
Para quem acredita, resta a hipótese do Joelma ter sido incendiado pelo Anhanga, na forma do veado branco com hálito de fogo.

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Depois do incêndio o prédio foi totalmente reformado e hoje á apenas um entre os milhares de edifícios de negócios da cidade.
Mas não se livrou das lendas.
Da mulher vestida de branco que caminha pelos seus corredores, nas horas tardas da noite.
Vista e conferida por um jovem advogado que fazia hora-extra, e por um motorista de Kombi que aguardava o descarregamento do seu veículo, em certa noite em que esperava sozinho na garagem a volta do seu auxiliar.
Os treze corpos encontrados no elevador foram enterrados lado a lado no cemitério de São Pedro, mais conhecido como Cemitério de Vila Alpina.
Dizem que nas segundas feiras, dias dedicados às Almas, se pode ouvir, no Cemitério, o choro de pessoas, que só cessa quando as sepulturas das 13 vítimas são molhadas.
Ali estão apenas os corpos, pois as almas ainda vagueiam pelo Joelma, realizando milagres.
Cartas de uma das vítimas psicografadas pelo medium Chico Xavier no livro “Somos Seis” serviram de base para o argumento de um filme rodado em 1979: “Joelma, 23 andar”.
O belo e sossegado edifício dourado pelos raios de sol, no final do outono paulista.

Larry Coutinho (foto e texto)

sábado, 10 de julho de 2010

O gasogênio - Crônicas da Cidade Plural


São Paulo, domingo, anos quarenta.
Rua Doutor João Pinheiro, 252, Jardim Paulista.
Estacionado, o grande automóvel, com dois tubos de ferro bem grandes instalados na traseira
Meu pai risca um fósforo e acende uma espécie de fogareiro a carvão.
Aos poucos se vai formando o combustível.
É o gasogênio!
Por causa da guerra, a gasolina não é fácil de encontrar.
Só mesmo no mercado negro.
Então alguém inventa o gasogênio.
Não me pergunte, pois não faço a menor idéia de como funciona a engenhoca.


Eu, meus irmãos e primos, alegres, não vemos a hora de partir.
Lentamente o carro contorna a praça David Campista, e entra na avenida larga, de duas pistas.
A avenida está quase deserta.
Passamos pelo que será a avenida Nove de Julho, ainda em construção e continuamos pela avenida Brasil.
E, logo depois, os mais novos gritam de alegria!
Estacionado em cima do canteiro central, como está todo domingo, o caminhão, a carroceria moldada na forma de uma grande taça de sorvete, e o nome escrito: Vamos!
Embaixo e em diagonal: Sorvetes.
Desencontros gerais de desejos: creme, morango, goiaba ... chocolate...
Minha mulher, espiando sobre meus ombros o que escrevo, diz:
- Na década de sessenta, em certa tardes, passava pela rua uma carroça toda branca, em forma de balcão com seis ou sete portinholas. Em cada uma um sabor. O maestro, todo de branco, era o sorveteiro... e servia sem descer da carroça, parecia encaixado confortavelmente no centro do balcão.
Porém, naquele domingo dos anos quarenta, na volta para casa, dedos e rostos melados, mamãe pergunta:
- Comprou as lâmpadas azuis? Eu já cobri todas as janelas com cobertores e colchas...
- Comprei. Será hoje? - pergunta papai.
- Sim.
Em casa, ao anoitecer, papai troca as lâmpadas, cuida para que não escape nenhuma luminosidade pelos vidros das janelas.
Ficamos amontoados sobre os sofás da sala, tensos, amedrontados, sufocados pelo ambiente magicamente azul, esperando pelos sinistros aeroplanos que voam sobre a cidade escurecida.
Ouvimos o rádio da casa vizinha, repetindo as instruções, pela vigésima vez.
E os motores dos aviões, cortando o silêncio da noite...
Serão os alemães e seus aliados do eixo que vieram nos bombardear ou é somente exercício?
Tremulo, fecho os olhos e espero para saber.

Larry Coutinho

terça-feira, 6 de julho de 2010

Teatro Brasileiro de Comédia TBC - Crônicas da Cidade Plural

Rua Major Diogo, 311

O TBC lançou a moda de aproveitar a inoperante segunda-feira para apresentar duas peças, em geral de um ou de dois atos.
Idéia mais tarde aproveitada pelo Teatro de Arena para montar as Noites de Bossa.
O TBC, fundado em 1948, terminou em 1964.
Em crise entre os anos 1956 e 1960 e depois de apresentar para o público paulistano o melhor do teatro europeu e mundial, no final dos anos 50 o teatro cedeu ao nacionalismo que avançava e apresentou a peça Gimba e depois O Pagador de Promessas.
Franco Zampari, seu criador, faleceu em 1966.
Em 16 anos de vida o palco do TBC montou cento e quarenta e quatro obras, assistidas por quase dois milhões de pessoas.
A formula vitoriosa entrou, perplexa, nos anos sessenta e o TBC foi uma das vítimas das mudanças ocorridas na década.
Posteriormente o Teatro foi reformado e duas salas foram construídas..
Não é possivel tratar do Teatro Brasileiro de Comédia sem falar no Nick Bar, ao lado do TBC. O proprietário era Joel Kantor. Em 1963 a atriz de cinema Sarita Montiel chegou a São Paulo. E um fato surpreende a todos: a bela moça retomou o romance com Joe Kantor que, segundo ela mesma , datava dos idos de 1954.

Larry Coutinho ( foto e texto)

domingo, 4 de julho de 2010

Hotel Cambridge - Crônicas da Cidade Plural



Bar do Claridge, que depois vira Cambridge. Eis a solução de mais uma dúvida, motivo de grandes disputas. O hotel têm dois nomes e pronto. O prédio do hotel (Cambridge) e o bar ainda estão lá, na avenida Nove de Julho, o automóvel quase chegando no vale do Anhangabau.
O hotel propriamente dito já fechou há muitos anos.
O bar continua, sendo alugado apenas para festas particulares e eventos.
Entretanto, pelos fundos, existe a entrada do bar Tarsila e do Restaurante Portinari, de propriedade do hotel, ambos funcionando a todo vapor.
Na década de sessenta o bar Cambridge divide com o João Sebastião Bar o título de Templo da Bossa Nova.
Que me desculpe o Carlinhos, que é gerente do João Sebastião: embora cantores e músicos dos dois estabelecimentos sejam quase sempre os mesmos, a música do Claridge/Cambridge é ligeiramente melhor, e o ambiente mais sossegado do que o do concorrente.
Certa noite, procurando um banheiro, largo o carro com o manobrista e entro, ligeiro, no bar do hotel.
E dou de cara com o Nat King Cole, em visita ao Brasil, que não larga o piano de cauda, branco.
Afirma-me o amigo Leo, guitarrista e cantor de punk-rock, ter-se apresentado recentemente - já em 2008 - no bar do Cambridge.
Atrações na década de sessenta do Claridge/Cambridge:
Manfredo Fest; Pedrinho Mattar (conjunto ligeiramente diferente do João Sebastião) sendo Pedrinho Mattar no piano; Azeitona, no contrabaixo; Toninho Pinheiro na bateria; Papudinho no pistom. Cantoras: Claudette Soares; Claudette Soares com Walter Wanderley; Alaíde Costa. Tá bom prá você?
(Segundo o gerente, sr. Nelson, o piano branco já não existe mais).
Larry Coutinho ( foto e texto)

O Cemitério e a Capela dos Aflitos - Crônicas da Cidade Plural


A manhã de sábado surge repleta de luminosidade.
Descendo do metrô, chego rapidamente à praça da Liberdade.
Uma bela feirinha japonesa desvia minha atenção por muito tempo.
Depois enfrento um quarteirão pela rua dos Estudantes, em busca do beco dos Aflitos.
Quero fotografar a Capela.
O beco está cheio de automóveis estacionados.
Milagrosamente alguns motoristas manobram e deixam a fachada da Capela livre para as minhas fotografias.
Naquele quarteirão ficava o Cemitério dos Aflitos.
O Cemitério dos Aflitos, criado em 1774 e destinado aos pobres, condenados, indigentes e os não-católicos.
Ocupava uma parte do que seria o bairro da Liberdade, anos depois.
A Capela dos Aflitos, que estou fotografando, foi edificada dentro do Cemitério, em 1779, inaugurada em 27 de junho.
Com a construção do Cemitério da Consolação em 1858, fecharam o Cemitério dos Aflitos.
Entretanto, os poucos registros de transferência de ossadas permitem imaginar que muitas delas ainda permanecem enterradas no local.
Debaixo dos alicerces das casas e dos edifícios, construções erguidas sobre o terreno loteado.
Dizem que nas madrugadas as ruas no entorno do local do antigo cemitério são assombradas pelos espíritos dos que ali foram enterrados.
A Capela dos Aflitos permanece em pé.
No beco dos Aflitos, número 70.
Travessa da rua dos Estudantes, 52.
Ainda rezam missas às segundas feiras, 15h00.
Reza do terço às 13h30.
Termino as fotos e vou saindo, olhado com certa apreensão por umas trinta ou quarenta pessoas sentadas nas soleiras das portas, e desconfiando de uns tipos esquisitos que olham para meu equipamento tão caro!
Certamente não agrado.
Vou saindo de fininho.
Uma última olhada e um detalhe na arquitetura da capela chama minha atenção.
Preparo a câmara fotográfica e volto.
Não percebo uma valeta cavada no cimento da calçada.
O pé falseia e despenco sobre o chão duro, espalhando todo o conteúdo da minha maleta de fotógrafo, que está aberta.
Alguns correm em meu socorro.
Sou levantado, escovado, paparicado...
Os tipos esquisitos aproximam-se e ajudam a procurar os caros assessórios.
Devolvem-me todos eles.
Finalmente, um garotinho magro, olhos encovados, aproxima-se com três tiquetes de metrô:
- O senhor deixou cair...
Uma moça magrinha, funcionária de uma loja da região, preocupa-se:
- Tem certeza de que está bem?
- Estou.
- O que o senhor está fazendo?
- Colhendo material para um Blogue. Dizem que este quarteirão era parte de um cemitério e aquela capela ficava no centro...
- É verdade. Quando construíram este prédio onde eu trabalho e encontraram caixões e ossadas...
- Você ouviu falar dos fantasmas..?.
- Nunca vi, mas conheço muita gente que viu ... saindo tarde da noite do trabalho ...
- Dizem que tem missa no fim da tarde das segundas feiras ali na capela...
-Tem. Eu não vou, porque sou evangélica...
Vou saindo do beco.
Palavras de “estimo melhoras”, “não se machucou?”, “volte para a missa!” vão atapetando de rosas aromáticas o meu caminho.
Beco dos Aflitos!
Larry Coutinho ( foto e texto)

Nossa Senhora da Cabeça - Crônicas da Cidade Plural


Rua Tabatinguera, 104
Juan Alonso de Rivas passeava a sua juventude pobre pela aldeia de Andújar, na Andaluzia, no antigo ano de 1227.
Por ali existia uma sucessão de pequenos aglomerados populacionais que vicejavam à sombra da Sierra Morena.
E na Sierra Morena um altivo pico se elevava sobre a simpática aldeia de Andújar.
Os aldeões o chamavam de Pico da Cabeça.
Então os jovens da aldeia foram para a guerra.
Combater contra os mouros.
Juan Alonso participou dos combates e caiu prisioneiro.
Tentou e conseguiu fugir.
Porém perdeu o braço na agitação que antecedeu a fuga.
Voltou para Andújar, onde conseguiu trabalho como pastor de cabras.
Levava os animais para pastos situados nas encostas do Pico da Cabeça.
Nas langorosas tardes da Andaluzia enquanto sonolento ele tentava vigiar os animais, julgava ouvir uma sineta que o atraia para o alto da encosta.
Finalmente na noite de 12 de agosto a sineta tocou novamente.
Juan Alonso olhou para o alto e viu uma fonte brilhante de luz, provinda de algum lugar próximo ao Pico da Cabeça.
Caminhou em direção à luz e encontrou uma gruta misteriosamente iluminada.
Sobre os rochedos estava bela imagem de Nossa Senhora.
Uma voz feminina suave e bela pediu que ele se deslocasse para a aldeia de Andújar e conclamasse os habitantes a construir um santuário.
Diante da argumentação de que não seria escutado, Nossa Senhora recriou o braço perdido de Juan Alonso.
- Mostre os dois braços e todos o ouvirão - recomendou Nossa Senhora.
Assim foi feito e assim aconteceu.
Hoje em dia o peregrino pode subir as três milhas de encostas que separam a aldeia do santuário e chegará à magnífica construção, toda ela feita em louvor à Nossa Senhora da Cabeça.
Que é padroeira da hoje cidade de Andújar.
E ali está a imagem da Nossa Senhora da Cabeça na rua Tabatinguera, número 104, na Capela do Menino Jesus e Santa Luzia,
Talvez desconhecendo a origem da Santa, o escultor colocou uma cabeça decepada na mão da imagem, que a segura piedosamente.
A existência de alguns ex-votos de cera representando cabeças nos fala sobre a natureza dos milagres que ocorrem por ali.
Todas as enfermidades que atacam a cabeça, incluindo as internas, como perda de memória, loucuras, diversas formas de deficiência, e assim por diante, são objetos dos pedidos a Nossa Senhora da Cabeça.
Como a devoção àquela Santa tão particular à Andújar chegou, ainda que modificada, ao Brasil, será objeto de investigação, isso eu prometo. Embora eu saiba que existem fatos nos quais é prudente não mexer.
Voltarei ao assunto.
Larry Coutinho (foto e texto)

Igreja do Menino Jesus e de Santa Luzia - Crônicas da Cidade Plural







Rua Tabatinguera, 104
A Capela e uma grande área do entorno foram tombados pelo Departamento do Patrimônio Histórico. É considerada construção neogótica de importância arquitetônica. Projeto do arquiteto italiano Domingos Delpiano.Inaugurada em 13 de dezembro de 1901.Ana Maria de Almeida Lorena Machado era dona de uma grande chácara na rua Tabatinguera. Nos fundos existia uma fonte de água, chamada de Fonte Santa Luzia.Isso porque quem tinha problemas de visão socorria-se das águas “milagrosas” da fonte.A fé naquelas águas levou à construção da Capela..Nossa Senhora da Cabeça conseguiu um altarzinho dentro da Capela, onde é cultuada.
Larry Coutinho ( foto e texto)

Maison Blanche - Crônicas da Cidade Plural


Para mim era coisa de Curitiba.
Final da década de 30.
Minha mãe, algumas semanas depois de cada parto, esgotada a dieta, vestia-se com aprumo e dizia:
- Vamos à Maison Blanche!
Voltavamos carregados com muitos pacotes.
Sapatinhos de lã, casaquinhos, cueiros, mantas, fraldas de pano....
Eis que a Maison Blanche de Curitiba rompe com as brumas do passado e recebe contornos firmes na cronica de Julio Militão, onde Paulo Leninski é abundantemente citado:
“Aos domingos, faceiros, no terninho de marinheiro da Maison Blanche, iam à matinada do Cine Ópera para ver Tom e Jerry.”
Evidentemente bem depois dos anos 30, porém ainda no século passado.
“As meninas, gabolas, enfeitadas em suas saias godê, da Ioclena, e bluzinhas da Mazer, uma loja infantil ao lado da Goud, na Rua dos Turcos.”
“A Maison Blanche era de de meninos. A Ioclena e a Mazer, de meninas.”
Anos depois e para minha surpresa, vejo na Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, em São Paulo, quase na esquina dos viadutos, calçada esquerda de quem desce para a cidade, uns dez ou doze metros de vitrines exibindo sapatinhos de lã, casaquinhos, cueiros, mantas, fraldas de pano.... - brancos, cor-de-rosa, azuis, verdes claro ... roupas de cama sob medida ...
E o nome da loja: Maison Blanche.
O mesmo aspecto despojado e ar de honestidade da loja de Curitiba.
Duas vitrines ladeando a entrada e uma faixa negra na testada, com o nome em letras brancas: Maison Blanche.
Embora a denominação e a organização visual sejam idênticas às de Curitiba, o negócio e os proprietários são outros.
Ainda está lá, para quem desejar conferir.
Procuro um pouco mais e encontro uma citação em Regina Horta Duarte, na obra Pássaros e Cientistas do Brasil. Em busca de proteção. 1894-1938”:
“Em 1908 a refinada loja da cidade do Rio de Janeiro, a Maison Blanche anunciou na revista Fon Fon, oferecendo os mais belos chapéus...”
Fotografo a Maison Blanche de São Paulo, tentando conseguir uma prova material da minha impressão onírica de menino pequeno.
É isso.


Larry Coutinho ( foto e texto)

Galeria Metrópole - Crônicas da Cidade Plural



São três entradas diferentes: na avenida São Luís, pela praça Dom José Gaspar e pela rua Basílio da Gama, que é quase um beco.
Um dos lugares paradigmáticos de São Paulo.
Abre para todos os bares e restaurantes da avenida São Luis, e para os que ficam na praça Dom José Gaspar, em volta da Biblioteca Municipal, hoje Mario de Andrade.
Tem vários subsolos e projeta-se para dentro da terra, como uma caverna.
Em redor de amplos espaços ficam pequenas lojas.
Restaurantes, cinema, boates, bares, livrarias, discos, casas especializadas na venda de poster’s e quadros... ganha duas canções especiais do Ivan Lins e do Vitor Martins. A primeira descreve a Galeria propriamente dita. A segunda avança no universo cultural e nas mudanças que ocorrem na cidade:

Galeria Metrópole I
Ivan Lins e Vitor Martins

“A galeria
foi a visão mais ampla
do que hoje é Sampa
e o que anda por ai.
Alem do que se canta
tudo o que hoje espanta
era o pais
Era o porão da liberdade
o embrião da caridade
no sub-solo da cidade.”
(...)

Quem freqüenta a Galeria Metrópole sabe o que os autores querem dizer. Lugar da santidade e do pecado mais negro, do amor fraternal e do ódio total, torna-se altar onde são sacrificadas todas as virtudes e ao mesmo tempo, templo das belezas imorredouras.
Nas quentes noites dos janeiros, homens solitários percorrem, de automóvel, o quadrilátero da praça, em busca de emoções mais fortes. Por todas as calçadas, mulheres e homens oferecem-se à sanha sexual dos notívagos. O ar exala sexo e devassidão. Galeria Metrópole, que os músicos e poetas julgaram merecer uma segunda canção:

Galeria Metrópole II
Ivan Lins e Vitor Martins

“A galeria foi
A caverna externa
Que expôs a baderna
A Semana Moderna
E o que tem que luzir
Proibiu Proibir
O barato total
O luar do sertão
E o sol tropical.
(...)
Inventou outros olhos
Caras bocas e nomes
Despertou outra fome
Nas mulheres e homens
Foi erógena antes
Foi andrógena antes
Como sempre Mutante
Outra vez bandeirante.
(...)
.O Bexiga era lá
A Bahia era lá
Todo baixo era lá
O Brasil era lá!”

Larry Coutinho ( foto e texto)

sábado, 3 de julho de 2010

Vidros e Perfumes - Crônicas da Cidade Plural














Reflexos

O vidro e a luz
que reluz
transparente,
são caso de amor
permanente.

Reflete o raio de sol
no vidro da janela
e rebate
aumentado,
entortado,
na parede branca
do quarto da donzela

in “Versos de vidro”
Yral Somar



Ladeira da rua Tabatinguera, que liga a praça João Mendes à várzea do Glicério.
Vidros e perfumes em profusão.
E essências para abastecer os perfumeiros da cidade.
Sábado, alguns minutos depois do meio-dia.
São tantos os fregueses que mal consigo espaço dentro das lojas especializadas para fotografar as vitrines em contra-luz.
Ando por ali em busca de duas igrejas: a da Nossa Senhora da Cabeça, ou do Menino Jesus e Santa Luzia, e a Igreja da Boa Morte.
Entretanto a vidraria e as essências conseguem chamar minha atenção.
São Paulo tem especializações, e tratarei delas oportunamente: vidros e essências na rua Tabatinguera; material eletrônico na Santa Efigênia; ferramentas na Florência de Abreu; panelas e artefatos para cozinha na rua Mauá; vestidos de noiva na rua São Caetano; roupas para bebê, na rua Oriente; roupas para adultos na José Paulino; comércio popular na Vinte e Cinco de Março; madeiras na rua do Gasômetro; artigos orientais na Galvão Bueno; e assim por diante.
Entretanto é sábado e estou na Tabatinguera contemplando a profusão de reflexos e formas e percebendo aromas inusitados.
Quero ir mais fundo na pesquisa mas não sou atendido pelos atarefados vendedores.
Voltarei num dia mais calmo.
Ladeira da Tabatinguera, reino insuspeitado dos reflexos e dos aromas!
Tabatinguera: Uma das mais importantes ladeiras do São Paulo muito antigo. Por ela descia-se para o rio Tamanduateí, para atividades e lazer ou para retirar um certo saibro branco que servia para a construção das casas. No século XVIII abrigou a casa da varíola. Um prédio utilizado para isolar os enfermos na época da epidemia. Em 1830, chamava-se Rua do Matemático. A Guerra de Canudos patrocinou enorme mudança nos nomes das ruas de São Paulo. A denominação de rua Moreira Cesar foi inevitável, mas não foi ali. Ali usou-se o nome rua Coronel Tamarindo ( o famoso coronel que dizia aos seus comandados: - Em tempo de muricy, cada qual cuide de si!). Em 1899 a rua recebeu o nome de Doutor Rodrigo Silva. Mas só metade da rua. A outra metade não tinha nome, era conhecida como “... a rua detrás da (igreja) Boa Morte”. Só em 1914 a ladeira recebeu o nome de Tabatinguera, denominação tupi que se referia ao barro, talvez o saibro branco que era colhido na várzea do rio Tamanduatei, no pé da ladeira. (Depois o nome Doutor Rodrigo Silva foi aplicado a uma rua próxima.)

Larry Coutinho ( foto e texto)

Igreja da Santa Cruz dos Enforcados - Crônicas da Cidade Plural
































Igreja da Santa Cruz dos Enforcados
Praça da Liberdade, 238



Francisco José de Chagas nascido e criado na rua das Flores atual Silveira Martins recebeu o apelido de “Chaguinha”.
Entrou para o exército e participou de um protesto pelo recebimento dos salários atrasados. Foi considerado culpado, e condenado à morte por enforcamento.
Em 20 de setembro de 1821, na forca erguida no atual largo da Liberdade, foi supliciado o “Chaguinha”.
Antes, enforcaram o soldado Contindiba.
Em seguida, o “Chaguinha”.

Chegada a vez do “Chaguinha”, as cordas arrebentaram duas vezes. O povo, penalizado com o infortunio do desventurado, clamou por “Liberdade!” Expressão que deu nome ao bairro. Entretanto as autoridades providenciaram corda mais resistente que arrebentou pela terceira vez. Providenciaram um laço de boiadeiro, de couro. E o “Chaguinha” foi enforcado definitivamente, na quarta tentativa.

O rapaz era muito querido pela população.
Nos meses seguintes ergueram uma cruz e acenderam velas no largo.
Em 1887 edificou-se uma Capela.
A primeira missa foi rezada em 1 de maio de 1891.
Na nova Igreja da Santa Cruz dos Enforcados.
Que está lá, com cinco cruzes no altar e dois salões próprios para receber as velas acesas pelos fiéis.
Um deles subterrâneo.
Negra, no centro do altar, a cruz maior veio do Cemitério dos Aflitos, que existiu no lugar.
As festas comemorativas fixaram-se em 3 de maio, a pedido da Irmandade.
Com direito a procissão.
A Igreja foi reformada nos anos vinte. No ano 2000 houve incêndio provocado por uma devota, que ali depositou enorme quantidade de velas.
A Igreja é também chamada de “Igreja das Almas”.

Larry Coutinho( foto e texto)