quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O mistério das moedas dobradas - Crônicas da cidade plural



Sobre insignificâncias lucrativas

Depois da briga no Pelourinho, Ernesto Anglicano experimentou a cadeia baiana.
Um inferno superlotado.
Entretanto conseguiu fazer amizade com certo preto velho que ao ser conduzido para uma prosa maluca sobre a vida secreta dos objetos, não só compreendeu Ernesto, como também lhe falou sobre as moedas dobradas do Pelourinho.
-Estão, todas elas, num buraco do muro da igreja de São Francisco. Naquela mata que fica atrás da igreja. Dá pra ver a cavidade pela janela da sacristia...
-Como foram parar lá?
-Dádivas dos peregrinos! As moedas eram dobradas e perdiam o valor de compra. Embora fosse crime de lesa-majestade danificar o dinheiro. As moedas que estão guardadas naquela cavidade e em outros lugares da Bahia são de prata, cobre e até mesmo de ouro ... perderam o valor como moedas, porém restou o valor do metal...
Ernesto Anglicano tinha conhecimento do costume medieval de sacrificar moedas para oferecê-las aos Santos, aos Anjos ou ao Espírito Santo, corrente na antiga Inglaterra.
Ele mesmo havia encontrado moedas de prata dobradas, na torre de Glastonbury e sabia que centenas delas tinham sido retiradas de riachos e poços sagrados.
Então lembrou que na sua juventude costumava colocar moedas nos trilhos dos bondes que subiam a rua Pamplona, em São Paulo.
Depois da passagem do pesado veículo, o grande desafio era o de encontrar as moedas dobradas, que às vezes saltavam para longe e costumavam desaparecer por entre as frinchas dos paralelepípedos.
Um inglês que havia comprado um lugar para sentar no chão da cela resolveu meter o bedelho na conversa.
O preto velho aproveitou para perguntar:
- Porque você foi preso, compadre?
- Alguém colocou alguma porcaria na minha bagagem de mão. Fui preso antes mesmo de subir no avião. Como você sabe, sou inocente.
- Aqui nesta cela não tem ninguém culpado! Arrematou Ernesto Anglicano, farejando proveitosa revelação.
- Na Inglaterra, mais precisamente em Yorkshire, onde se fabricava manteiga, as operárias dos laticínios costumavam manter uma moeda dobrada à mão, para o caso do creme obstinar-se em não virar manteiga. As moedas dobradas eram conhecidas como “talismãs da nata”. Também a literatura elisabetana está repleta de moedas dobradas, oferecidas às senhoras como prova de amor. Eram as famosas “moedas de quatro pences curvadas”.
- Não sei porque, quando eu penso em um tesouro, penso em moedas - lembrou Ernesto Anglicano - não consigo imaginar uma arca de piratas repleta com papel moeda!
- É verdade - lembrou o inglês - as moedas possuem uma espécie de sortilégio... Talvez devido ao metal em que são cunhadas...
- Hoje, aço inoxidável, bronze, latão ou alumínio - disse o negro velho - não valem muito!
- Porém, no passado, eram de ouro, prata ou cobre - acrescentou Ernesto Anglicano.
-As moedas de cobre, de quarenta réis, eram usadas na Bahia para tocar o berimbau - hoje desapareceram... esclareceu o preto velho, sem ser perguntado.
- Na Grécia antiga a alma de quem morria precisava atravessar o rio Estige para conseguir a paz no mundo inferior. Só havia um jeito: utilizar os serviços do barqueiro Caronte. Que cobrava a passagem em dinheiro corrente. Assim eram colocadas moedas na boca e nos olhos dos mortos... - o inglês revelava certa erudição.
-Você conhece bastante sobre moedas! Admirou-se Ernesto Anglicano.
- É que vivi delas por certo tempo - explicou o inglês - assim como ganhei muito dinheiro com o chamado “ouro velho”!
- O ouro envelhece? Perguntou o preto velho.
-Só na cabeça das mulheres - e o inglês riu.
- Como é que você ganhou dinheiro com moedas?
- Moedas tortas, perfuradas, desfiguradas ou com danos de qualquer natureza parecem ter perdido o valor de compra. Eu as trocava e pagava um centavo por qualquer uma delas. Depois as levava a um Banco. Ao recolher as moedas, o Banco fornecia um recibo. Depois de examinadas pelo Banco Central, as moedas danificadas eram destruídas e eu recebia o ressarcimento ... quase sempre pelo valor real das moedas! Algum tempo depois, eu percebi a fascinação que as moedas revelam pelas fontes, poços, cavidades inundadas...
- Por exemplo, a Fontana de Trevi? Ernesto Anglicano tentou adivinhar.
-Exatamente. Por alguma obscura razão as moedas levam os seres humanos a atirá-las nesses locais. São oferendas votivas. A prática pode datar à Idade de Bronze, quando certa deterioração climática fez com que os deuses do céu e da terra fossem substituídos por divindades aquáticas...
-Iemanjá! Exclamou o velho - nas viradas dos anos os baianos atiram quantidades assombrosas de moedas nas águas do mar, oferendas à rainha das águas, Dandalunda...
- Houve época, em Ubatuba, que eu fazia o mesmo - lembrou Ernesto Anglicano - certa passagem de ano, precisando de sorte, atirei nas ondas quantidade absurda de moedas...
-E deu certo? Interessou-se o inglês.
- Não. E no ano seguinte voltei, procurando recuperar algumas das moedas atiradas, em vão...
- Ouça - prosseguiu o inglês, eu estava em Londres quando a a velha Ponte de Londres era desmontada para ser levada para o Arizona. Então descobri que o leito do rio Tamisa, sob a ponte, estava atulhado por moedas imperiais. Consegui apossar-me de uma centena delas e as vendi, lentamente, em leilões de antiguidades. Com o resultado obtido consegui viver confortavelmente durante cinco ou seis anos. Também consegui vinte moedas com a efígie de Antonino Pio, do século dois, ano do Senhor, retiradas do poço celta dedicado à ninfa Coventina...de posse dessas informações e conhecimentos, quando cheguei ao Brasil, instalei alguns poços dos desejos em diversos shoppings centers. Consegui viver da coleta das moedas, até que fui denunciado por funcionários que desejavam o botim para eles. Depois houve aquela inflação galopante. O dinheiro que na véspera podia comprar, por exemplo, uma bicicleta nova, no dia seguinte mal dava para um maço de cigarros... uma moeda de cinqüenta centavos valia menos do que o seu peso em metal...troquei papel moeda por moedas pelo insignificante valor nominal, arranjei maquina que as furava no centro e passei a vender as moedas pelo dobro do valor, como arruelas para oficinas mecânicas ... Finalmente apareceu aquela porcaria na minha mala de mão e aqui estou eu...
-Ernesto Anglicano! - chamou o carcereiro.
Antes de atender ao chamado, Ernesto Anglicano passou um cartão de visitas ao inglês.
-Procure-me, quando sair daqui. Quero saber porque as pessoas dobram as moedas...e como, pois não é fácil dobrá-las!

(Trecho retirado do conto A Associação, in Ciprestes, casuarinas e riachos, de Coutinho, Larry)

Larry Coutinho

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Ministros, da corrupção, dos delitos e das penas - Crônicas da cidade plural

- A palavra corrupção - ensinou o professor Benjamim Silvano - do substantivo latim corruptione, é uma espécie de palavra-ônibus, que carrega em seu interior boa quantidade de significados diversos. Pode ser decomposição, putrefação, devassidão, depravação, perversão, e suborno ou peita, quando aplicada no sentido de ato ou efeito de corromper...
Giselda Monti interrompeu a brilhante dissertação:
- Mas o que significa corromper, professor?
- Quanto à palavra corromper - do latim corrompere - tratando-se de verbo, seus sinônimos sempre pedem um agente, humano ou natural, homem ou calor, por exemplo. O calor corrompe certos alimentos: torna podre, estraga, decompõe, o ser humano corrompe seu semelhante indiretamente, através de artifícios como alterar, adulterar, ou diretamente, quando perverte, deprava, vicia, suborna, peita, ou compra. O fato parece desconhecido dos moralistas, pois opondo-se à pessoa que compra, está a pessoa que vende. E vice-versa.
A douta observação partiu, naturalmente, do professor Benjamim Silvano.
Nossa modesta crônica não vai além da sala de aula nem dessas duas ações, comprar e vender.
Engana-se quem quiser atribuir outra intenção qualquer.
Tratam-se de pequenos jogos, bastante praticados desde que o mundo é mundo.
Sendo advertência razoável, íamos seguir escutando o brilhante professor, quando Giselda Monti voltou à carga:
- No universo da venda e da compra, como surgiu a palavra camelô?
- Parece que originou-se do francês camelot... - seguia a explicar o professor, quando o cearense Severino resolveu complicar:
- Diabos! Em francês a palavra serve para designar um certo tipo de tecido - conhecido também em português por camaleão - e o camaleão é animal propriamente dito, cuja lenda pessoal afirma poder assumir as cores das superfícies por onde anda, permanecendo quase invisível, graças ao fenômeno chamado mimetismo. Camelô, outrora, tratava-se de mercador ambulante, que vendia nas ruas, em geral nas calçadas e praças, bugigangas e quinquilharias, apregoando-as de modo característico, típico e pitoresco...
O professor Silvano resolveu prosseguir dali mesmo:
- Quando o indivíduo era vendedor de mercadorias ordinárias - no sentido da má qualidade - os franceses utilizavam o substantivo camalotier. Transpondo a palavra para a exigência de agente, ela era transformada em verbo, a indicar ação, e a expressão era camaloter, que significava, freqüentemente, fabricar mercadorias ordinárias...
O paranaense Telmo resolveu entrar nas explicações:
- Não sei quando a palavra camelô invadiu as nossas ensolaradas praças. Minha avózinha querida os chamava de bufarinheiros. E assim, de repente, sobem-me à cabeça certas recordações da infância, friorenta e sossegada, nos arrabaldes de Curitiba...
O professor Benjamim Silvano examinava as próprias unhas da mão esquerda aparentemente enlevado, voando sustentado pelos dois assuntos que o preocupam como se fossem tapetes mágicos.
Telmo aproveitou para resvalar de rumo e dissertar por onde lhe convinha.
Ei-lo em Curitiba, final dos anos trinta.
Segundo ele o polaco da lenha entregava achas e troncos praticamente todos os dias, pois o grande fogão de oito bocas que aformoseava a enorme cozinha era devorador guloso da madeira seca.
Padeiro e leiteiro surgiam diariamente, madrugada ainda.
O verdureiro, que abastecia a casa com verduras, legumes e frutas aparecia uma vez por semana.
Outros vendedores ambulantes surgiam e desapareciam aleatoriamente. Eram velhos que tangiam cabras e ofereciam leite fresco tirado na hora, que era bebido temperado com açúcar e canela; judeus envelhecidos prematuramente - a primeira guerra mundial mal terminara - que compravam e vendiam roupa usada, e gritavam o pregão: - Comp’a’ropa! além de pipoqueiros, sorveteiros, vendedores de carvão, de redes nordestinas batidas em tear manual, esses últimos vendedores eram raros, porque não conseguiam suportar os meses frios de Curitiba, e Telmo pretendia seguir com todo o elenco, extravagante e curioso para os dias em que estamos tentando sobreviver, repletos de tecnologia e invenções estonteantes.
- Os bufarinheiros eram especialistas em acender desejos secretos - interrompeu Severino, tentando compreender se houvera alguma intenção ofensiva nas palavras de Telmo - eles eram mestres em criar compulsões de compra e lidavam com a imponderável curiosidade, na minha modesta opinião, a mais sedutora das fraquezas femininas, o sentimento que as faz, desde assistir novelas na televisão até trair o marido com o melhor amigo dele. Dizem que é paixão, amor, desejo, porém discordo do que dizem: é somente curiosidade...
- Que é que tem? reclamou Gisela Monti - como toda mulher, eu também gosto de comparar...
Severino lançou um olhar de desprezo e prosseguiu:
- Pois bem, os bufarinheiros carregavam uma caixa de pinho, chata e quadrada, e dela tiravam, como em passes de mágica, agulhas de bordar ou de tricotar, dedais, linhas coloridas, esbeltas ou grossas, lenços finos de cambraia e enormes lenços de seda para amarrar à cabeça, enfeitando com seus desenhos múltiplos e coloridos, coleções de sabonetes, com diversos formatos e inúmeros aromas diferentes... era um universo de quinquilharias e de bugigangas que o astuto vendedor ambulante fazia surgir das entranhas daquela caixa mágica, cheia de mistérios maravilhosos...
Telmo, aborrecido com a intervenção, sussurrou para Giselda Monte, alto o suficiente para ser ouvido por todos:
- Esse cearense, para mim, é veado ...escute só: caixa mágica cheia de mistérios maravilhosos...- imitou o colega, que se calou, vermelho de indignação.
Giselda Monti sorriu e concordou prontamente.
Manoel, quase sempre calado, sentiu pruridos de conferencista e desabou:
- A avó da minha mulher, tripeira da cidade do Porto, os chamava de adeleiros. Impropriamente, segundo a minha outra avó, a brasileira. Para ela, adeleiro era aquele comerciante que só comprava e vendia trastes usados. Também respondia pela denominação de bufarinheiro, porém era mais propriamente designado como adelo, merca-tudo, ferro velho, bricabraquista, roupavelheiro, zângano... se bem que zângano, termo derivado do espanhol zángano, utilizado também como sinônimo de adeleiro, na verdade expressava certa tendência explicita para a desonestidade. Não era vendedor de gatos por lebre, como o adelo, tratava-se, isto sim, de parasita, fraudulento e agiota desonesto. Agia como agente de negócios particulares, ou preposto de corretores. Dele derivou o termo zangão, tão utilizado injustamente em certas bolsas de valores oficiais... porém em Portugal, o termo adeleiro significa o mesmo...
- Como o mesmo? - irritou-se Severino.
- Bem, o mesmo ...veado, paneleiro, adamado, adeleiro...
- Ó Manoel, acho que...
Vendo o lado para onde caminhava o andor o professor Benjamim Silvano habilmente trocou de assunto:
- Na minha infância, cheguei a negociar com compradores de jornais já lidos, garrafas e ferro velho. Quando transferimo-nos para São Paulo - na época eu não mudava sozinho para lugar algum, daí o plural - soube que tais negociantes eram conhecidos como garrafeiros. Ainda hoje infernizam a cidade com suas enormes carroças, nas quais as bestas e os cavalos foram substituídos por homens e mulheres, alguns deles e algumas delas nordestinos em busca de melhores oportunidades na vida ...
- A aula, hoje, está de amargar... - queixou-se Severino.
- ...melhor para eles seria se permanecessem no único deserto habitado do mundo, a ingerir sopa de palma, na hipótese da existência de líquido para diluir o caldo, prosseguiu, inocentemente, o professor Silvano - não vai aqui nenhuma sugestão racista: trata-se de sensato conselho de quem já viveu e percebeu a dureza da vida nas ruas da capital paulista...
Pela primeira vez atuando com sensatez, Giselda Monti tentou reconduzir o debate:
- E sobre os Ministros, quando falaremos?
- Já estamos! exclamou o Manoel.
- Não! Estamos falando de compra e venda!
- Pois não é o mesmo? O rude bom senso de Manoel revelou-se novamente.
Até então calado, o Aurélio Antônio de Albuquerque e Souza resolveu meter a colher:
- Olha aqui, gente. Não sei como vocês conseguem viver as suas vidinhas medíocres sem casa em Angra dos Reis. Nossa família tem uma em Angra e outra no porto Bracuy. Ambas com píer voltado para o canal. onde podemos ancorar os veleiros e as lanchas...
- Oh! Aurélio Antônio! Não venha tripudiar sobre a nossa miséria endêmica - exclamou o Severino, ofendido por não possuir casas em Angra - estamos falando de Ministros...
- Pois é - retrucou o Aurélio Antônio - Ministros! As casas em Angra foram compradas pelo meu bisavô, quando foi Ministro do Jango...
- Chega! berrou o professor Silvano.
Sem dar importância ao destempero do professor, o cearense Severino insistiu no assunto.
- Olhem aqui! Um homem passa toda a vida na mediocridade financeira, ganhando alguns salários-mínimos por ano! De repente, notabilizado pela política, ei-lo Ministro! O pobre homem, que vendia rapaduras, imediatamente toma posse e vai conferir o que poderá vender...
- Só porque sete ou oito Ministros andaram vendendo o que não deviam... ia atalhar a Giselda Monti, quando foi interrompida pela campainha a indicar o fim da aula.
Escondendo os seios fartos Giselda abotoou a blusa e para decepção dos homens presentes juntou seus livros e desapareceu no corredor, deixando no ar um aromazinho safado de almíscar selvagem.

Larry Coutinho