sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Iemanjá nas Santerias e nos Candomblés - Crônicas da cidade plural.



Aproxima-se o dia 2 de fevereiro, a passos largos.
Na Bahia é o dia reservado pelos baianos para cultuar Iemanjá.
Ando escrevendo sobre a música cubana e noto que existe surpreendente afinidade entre certas áreas do Brasil e as ilhas de Cuba.
Muitas pessoas encontraram grande semelhança entre a Malecón, em Havana, e o Pelourinho, em Salvador.
Ainda mais sabendo que tanto a Bahia quanto Cuba foram colonizadas quase que da mesma maneira.
Escravos africanos provindos da mesma região da África cultivando fumo e cana de açúcar.
Os charutos cubanos (exemplo: Monte Cristo) são famosos, mas os da Bahia também são (exemplo: Alonzo Menezes).
No tempo de colônia, ambos os países viveram o ciclo econômico do açúcar.
A Santería cubana assemelha-se ao Candomblé baiano, religiões populares que adoram os mesmos orixás.
No que diz respeito à adoração aos mesmos orixás pelos baianos e cubanos, transcrevemos aqui uma rumba cubana, em décimas, uma espinela modificada (veja o meu livro A Arte da Décima e da Viola) recolhida em Havana por David Millán Rodrígues, em 1996.
Trata-se de uma canção notável pela abordagem aos motivos religiosos afro-cubanos.

“ Dicen que la Santería
Está de moda en la Habana.
Por eso a mi me engalana
A ver esa señorona
Con esa linda mantona
Toda vestida de blanco
Que me cubra con su manto
Por qué no decirlo así
Que todos recen por mi
Al pie de todos los santos.

Muchas veces desesperado
Yo le rezo a Yemayá,
Olofín, Obbatalá
Y a la Caridad del Cobre (Oshún)
Que pongan su manto noble
En manos de un iyawó
A ver si así cambio yo
De la manera en que vivo
No lo tiren al olvido
Se lo ruego por Changó”.

Amigos Iorubás baianos, eis aí: Iemanjá, Olofin, Obbatalá, Oxum e Xangô.
Chega, ou querem mais?

Para aqueles que não se identificam com os Iorubás, cultura africana sudanesa, também chamada pelos franceses de Nagô à qual somam-se os Gegê (ou Jeje), Mina e Fanti-Ashanti, devemos informar que a tradição popular conseguiu o milagre de sobrepor religiões, a professada pela igreja católica romana colocada sobre a mitologia complexa e cheia de deuses principais e intermediários, sacerdotes e sacerdotisas do culto africano.
Creta, uma ilha do Mediterrâneo, era dividida em várias cidades-estado independentes, que viviam às turras entre si, mas diante de um adversário comum, aliaram-se, e essa reunião de desiguais foi chamada pelos gregos de sygkretismós (sincretismo).
Alguns estudiosos de assuntos sociais contemporâneos passaram a aplicar o termo sempre que conseguiam diagnosticar situações em que houvesse fusão de elementos culturais diferentes em um só elemento, continuando perceptíveis alguns sinais originários.
Assim, tornou-se lugar comum designar como sincretismo religioso esta fusão, ou confusão de elementos religiosos que aconteceu na Bahia, em terras brasílicas, e como estamos vendo, também em Cuba.
O que tem sido pouco explorado pelos estudiosos é uma outra espécie de sincretismo, o musical, responsável pela criação de inúmeros gêneros latino-americanos, sobre os quais estamos constantemente dissertando, nos quais houve a superposição de versos, melodias e harmonias de origem européia sobre o polirítmo africano provindo de instrumentos de percussão das mais variadas formas e procedências.
Edoard Vodissich é um europeu de ascendência austríaca e suíça, mas que se encantou com o Brasil e aqui fixou residência, em 1953.
Pois bem, partindo dos elementos essenciais da cultura africana e estudando seu transplante para as Américas, tratou do longo processo de aculturação sofrida por ela em novos solos.
Eis aí: a música africana ao entrar em contato direto com os europeus e índios, proporcionou o que ele chamou de sincretismo musical, não alheio até o próprio jazz.
Vale a pena uma leitura demorada da sua obra, principalmente do livro “Sincretismos da Música Afro-Americana”.
Estão focalizados naquele volume, entre outros igualmente importantes, os seguintes gêneros musicais: spirituals, blues, rag-time, jazz, rumba, calypso, choros, samba, frevo, maracatu e bossa nova.

Enquanto o confortável táxi nos leva pelas ruas da cidade de São Salvador, o Nunes, maravilhosa mistura de motorista e intelectual fala sobre o Candomblé baiano:
- Em termos religiosos e graças ao sincretismo, santos ou deuses africanos são reverenciados nas imagens e estampas dos santos católicos e quase sempre a estes identificados. Parece que a idéia não provém dos africanos, mas dos indígenas do Caribe...
- Qual é a relação, Nunes? Estou curioso!
Nunes faz sinal com a mão, pede-me que espere enquanto fala no telefone celular.
Negocia uma corrida de táxi para o final do dia.
Depois prossegue:
- O importante é ler a obra do frei Bartolomeu de Las Casas. Bartolomeu de Las Casas foi um padre dominicano espanhol, e escreveu “La História de Las Índias” entre 1527 e 1564, deixando a obra inacabada por ocasião de sua morte, em 1564. É verdade que produziu outras obras - “Brevíssima Relação de Destruição das Índias” - e muitos escritos em latim. A “Brevíssima Relação’ narra com impressionantes detalhes, ilha por ilha no mar do Caribe, e também região por região, na terra firme, como os conquistadores espanhóis fizeram para aniquilar os milhões de índios que habitavam a América Espanhola...
Nunes descuida-se com a direção do automóvel e quase atropela uma garota que atravessa a rua sem olhar
Depois dos gritos, da indignação, dos comentários maldosos, Nunes sossega e continua com a história:
- Desde logo Las Casas compreendeu que os índios não tinham condições nem físicas nem culturais para executar os pesados trabalhos que os espanhóis haviam reservado para eles. Solicitou e obteve autorização dos reis da Espanha para levar negros africanos para a América Espanhola, com a finalidade de colocá-los para trabalhar nas minas (mercúrio, ouro, prata, e mais recentemente, o níquel). E assim, com a chegada dos escravos, começou a povoação negra da ilha de Hispaniola...
- Eu li a “Brevíssima Relação de Destruição das Índias”- informo - Las Casas traçou o perfil de indígenas pacíficos, obedientes e desenganados...
- Não! discorda o Nunes - na realidade, os índios não eram assim! Havia uma relação de guerra entre espanhóis e indígenas, comportando combatentes de um e do outro lado. E foi a guerra que patrocinou a destruição dos índios e o assassinato recíproco. Os índios resistiram, tanto de forma explicita através dos combates, quanto de forma implícita, como por exemplo, provocando o rompimento das comunicações verbais. Os índios se calaram, e este foi o primeiro sinal de resistência. Em 1503, a rainha Isabel ordenou ao governador da Espanha que obrigasse os índios a falar...
- Como é que os espanhóis fizeram para obrigar os indígenas a falar? Pergunto, sinceramente curioso.
- Não sei - confessa o Nunes. O silêncio indígena conteve o discurso espanhol de manipulação ideológica, que só podia ter efeito e significado quando referido ao discurso indígena. As falas dos índios, quando obrigadas, eram sempre metafóricas e de sentido figurado, e isso confundiu os conquistadores. Dai, talvez, a sugestão de Las Casas à coroa espanhola, de substituir escravos índios por negros. E agora vem o que nos interessa. Junto com o silêncio, os indígenas aproveitaram para ocultar e manter viva sua história, que na aparência havia morrido. Simulando aceitar a religião cristã, os indígenas construíam altares para agradar aos padres, porém atrás da imagem do Cristo estavam ocultos nas paredes os ídolos pagãos...
- Assim como os africanos aceitaram Nossa Senhora e diversos santos católicos para encobrir seus verdadeiros deuses...
- Sim. Como resultado do comportamento indígena, o silêncio e a simulação dificultaram o entendimento da sua cultura! Por sua vez os sacerdotes cristãos destruíram monumentos, pinturas e códices índios e assim sepultaram para sempre as raízes da cultura indígena, e o fizeram por conta própria, na defesa das suas crenças católicas. Agora, quando eles ajudaram a destruir os indígenas, o fizeram por conta da coroa espanhola.

No final da tarde o Nunes colocou o automóvel a transitar pela avenida Vasco da Gama, percorrendo as margens do dique do Tororó.
O dique é um lago artificial criado no século XVIII e substituiu um outro, anterior e construído por escravos e holandeses com pás e picareta, no século XVII.
O dique do Tororó, logo depois da inauguração, serviu para o abastecimento doméstico de água fresca.
Dai a velha canção baiana:

“Eu fui no Tororó buscar água, não achei
Achei bela morena, que no Tororó deixei(...)”

Soberbas no meio do lago, as estátuas do escultor Tati Moreno retratando oito orixás postados em círculo.
No centro, um repuxo aspergindo água para o céu.
- Aqui é a morada de Oxum - o orixá da água doce, dos lagos e das fontes. E hoje, como é sábado, é dia de Iemanjá e de Oxum. Informou o Nunes, sempre preciso nos esclarecimentos.
Por intermédio do Nunes eu soube que os orixás mais populares na Bahia são:
Oxalá - identificado ao Senhor do Bonfim, Sagrado Coração de Jesus, Divino Espirito Santo, Jesus Cristo e assim por diante;
Xangô (Changó, na espinela cubana) - orixá dos raios e das tempestades, identificado a Santa Bárbara, São João e São Jerônimo;
Yansã - mulher de Xangô, com as mesmas prerrogativas deste e também com a função de guardar as almas dos mortos. É reconhecido como marido, quando Xangô identificar-se com Santa Bárbara. Complicado, não é mesmo?;
Cantei para o Nunes a rumba cubana e ele estranhou:
- Quem é Caridad de El Cobre?
Eu explico:
- Caridad de El Cobre, ou Oshún para os cubanos, é Oxún dos baianos. A segunda mulher de Xangô, Oxun, como você mesmo explicou, é orixá das águas doces, rios, lagos e fontes, e a rainha do rio, do amor, da feminilidade, símbolo da coqueteria, da graça e da sexualidade femininas. Suas cores são o amarelo e o amarelo-ambar. Assiste a gestantes e parturientes, e se identifica com várias Nossas Senhoras: Candeias, Conceição, Aparecida, e em Cuba com a Virgem da Caridad de El Cobre. El Cobre é uma pequena cidade que fica a 15 quilômetros a oeste de Santiago de Cuba. Lá está o Santuário Nacional da Virgem de Caridade, em 1916 declarada padroeira de Cuba pelo Vaticano. Foi coroada pelo Papa João Paulo II, durante sua visita a Cuba.
- Entendo. As diversas Nossas Senhoras sempre encontram correspondência em várias figuras do Candomblé. Por exemplo, Iemanjá (Yemayá na espinela, como é tratada nas Santerias cubanas) - orixá das águas do mar, mãe de Ogum, Oxossi e Xangô, e de todos os outros orixás, identificada com as Nossas Senhoras do Carmo, Rosário, Conceição, Virgem Maria. Seu nome, em iorubá é “Yeyé omo ejá” e significa Mãe dos Peixes. E é por isso mesmo que na Bahia, no dia 2 de fevereiro, assistimos enorme quantidade de barcos de todos os tipos e milhares de pessoas acotovelando-se na beira das praias, buscando lugar nesta ou naquela embarcação para, no mar alto, depositar sua braçada de flores, seu perfume, seu espelho, seu pente, enfim, sua dádiva para a Princesa de Aioká, Dandalunda, Inaê, Janaína, a Rainha do Mar. Vaidosa, Iemanjá, gosta de objetos de adorno como oferenda: jóias, perfumes, espelho, pó de arroz, talco, batom, flores....
- Eu ouvi dizer que Iemanjá não é a Rainha do Mar... provoco o Nunes e a resposta vem, célere.
- Bem, na festa de Iemanjá, os Ogan de Oxún que estão por ali sorriem intimamente, sabendo o que só eles sabem: o orixá supremo do mar, para os africanos, não é Iemanjá - é Olokon, ou Olocum. No Brasil, Iemanjá tomou seu lugar na preferência popular, mas o supremo é Yá Olokun, um Irunnalé, orixá da linhagem do branco, da mais alta estirpe, mãe e senhora do mar. Supostamente mãe da própria Iemanjá. Na África Iemanjá é o orixá do rio Ogum, o maior da Nigéria. Como a Bahia não tem um grande rio, ela passou a ser protetora do mar. Porém na Bahia, no dia 2 de fevereiro, quando o rum, o maior dos atabaques inicia e marcação e puxa as cantigas, a dança é em louvor dos orixás, Ogum, Yansan, Omolu, Xangô. Todos são saudados, principalmente os orixás das águas, Nanan, Oxum e Iemanjá.
-Nos cultos da Umbanda do sudeste (Rio de Janeiro e São Paulo), o dia de Iemanjá é 8 de dezembro. .. tento falar, mas o Nunes não deixa, pois não está interessado na Umbanda paulista e nem na carioca.
- Iemanjá gosta de comida branca e sem sal. Arroz, manjar de coco e acaça (bolo de milho). Prefere a carne da ovelha. A saudação de Iemanjá é “odoyá”...
Imediatamente eu lembro que está chegando a hora de jantar., e digo isso ao Nunes.
- Aonde quer ir?
- Ao Iemanjá!
É preciso ser baiano e freqüentar terreiros para perceber certas sutilezas. Por exemplo, na praia da Barra existe um restaurante tradicional chamado Iemanjá especializado em moquecas de camarão (chique e caro). Próximo ao Pelourinho instalou-se um outro restaurante, com a mesma especialidade culinária. Simpaticamente, tomou o nome Odoyá, que é a saudação habitual a Iemanjá. Pode ser encontrado facilmente na Praça do Cruzeiro de São Francisco, número 1 ou 2. Com direito a happy hour e música ao vivo depois das dezessete horas. Ocasião em que são colocadas mesinhas na calçada.
Enquanto o automóvel corta as ruas de Salvador, eu e o Nunes tentamos identificar os orixás cubanos citados na rumba-espinela.


Concordamos que Ogum , Oxóssi, Omulu ou Xapanã, Ibejis, Exu são orixás de elevada qualidade.
Iyawó, também citada na espinela cubana, deve ser uma das baianas Iaô, filhas-de-santo que passam por um período de iniciação no peji. O termo nagô é mesmo yawô.
Iaô quer dizer esposa, mas na verdade tem o significado de noviça.
Obbatalá (ou Obatalá, na Bahia) é o céu. Pode ser uma qualidade de Oxalá, ou é o nome de um dos obá, da direita de Xangô. Trata-se de orixá da máxima importância, uma vez que foi o criador do gênero humano. É Nossa Senhora das Mercês, da religião católica.
Apesar da quase secreta maternidade de Olocum, costumam dizer que Iemanjá nasceu da união de Obatalá (céu) e de Odudua (terra), teimando, a Bahia, em ignorar Olocum, a verdadeira rainha do mar e mãe de Iemanjá.
Olofin também mencionado na espinela é a terceira manifestação de Olodumare.
Aqui na Bahia ou em Havana todas estas designações são derivadas da língua iorubá e Olofin significa “dono do palácio”.
Seu palácio é o céu e sua corte são os orixás.
Olofin só mantém contato indireto com a humanidade através dos orixás
Afinal, ele dirige os orixás e supervisiona seus trabalhos.
E o Nunes conclui:
- As três Nações do Candomblé brasileiro são: Jeje, Ketu e Angola. Cada uma das três Nações tem dialetos e ritualística própria. Na Nação Jeje os deuses são chamados de Voduns; na Nação Ketu, de Orixás e na Nação Angola, de Inkices.
E eu arremato com o resultados de alguns estudos anteriores:
- A Santeria cubana, que é conhecida regionalmente como La Regla Ocha, ou La Regla de Ochá, aproxima-se especialmente da Nação Ketu brasileira...
E fim de papo.
Chegamos ao restaurante Iemanjá , de frente para o imenso mar da Bahia.
Descemos apressados para enfrentar a maravilhosa moqueca de camarão que nos aguarda.
Para oeste o céu tinge-se das cores baianas do crepúsculo e posso adivinhar casais de namorados acantonados nas encostas do farol da Barra, contemplando o belíssimo espetáculo.
Depois do jantar corremos para assistir a última missa do dia na igreja de São Francisco, para os lados do Pelourinho.

Larry Coutinho


Para quem quiser saber muito mais:

-Carneiro, Edison - Candomblés da Bahia - Ed. Ediouro - inclui Vocabulário de termos usados nos Candomblés da Bahia.
-Vodissich, Edoard - Sincretismos da música afro-americana.
-De las Casa, Bartolomeu - “Brevíssima Relação de Destruição das Índias”- pode ser encontrado, em espanhol, na Internet.
-Coutinho, Larry - A arte da décima e da viola - no prelo.
-O Nunes, se você tiver sorte em embarcar no taxi dele, em Salvador, Bahia.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Costa Concórdia, o naufrágio, Ulisses e as sereias: a realidade e o mito. - Crônicas da Cidade Plural.

Na região do mar Tirreno que cobre a distância entre a ilha da Córsega e a costa italiana estende-se a área oceânica de domínio das sereias.

E ali fica a Ilha das Sereias, citada por Homero e de nebulosa localização.

A barca que zarpar do porto de Civitavecchia, a noroeste de Roma, logo navegará por entre as ilhas de Monte Cristo, Giglio, Pianosa, Elba e Capraia.

Além de muitas ilhotas e rochedos.

Em uma daquelas pequenas porções de terra habitam as sereias.

No continente, a área fica demarcada por dois cabos, o Argentário, ao sul, e o Piombino, a noroeste.

O barco que demandar o mar Ligúrico em busca dos portos de Livorno, Gênova ou Mônaco cruzará, por obrigação imposta pela rota ancestral, os estreitos entre o cabo Argentário e a ilha de Giglio e, um pouco depois, o estreito entre o cabo Piombino e a ilha de Elba.

Por ali passaram quatro mil anos de navegação romana.

Recitando em público, o rapsodo Homero contava em versos sobre as precauções que deveriam ser tomadas pelo navegador que empreendesse viagem marítima pela região, desde dois mil anos antes do nascimento de Jesus Cristo.

Não foi diferente com Ulisses.

Prevenido pela feiticeira Circe do sortilégio das sereias, do seu canto mavioso e do seu maravilhoso vergel, Ulisses preparou a cera com que vedou os ouvidos de todos os seus marinheiros.

Em seguida pediu que lhe atassem os pulsos e os tornozelos ao mastro.

Assim preparados, os companheiros, sentados, feriram com os remos o mar cinzento.

Quando o canto das sereias começou a seduzir Ulisses, o único cujos ouvidos não tinham sido vedados com cera, ele forcejou para livrar-se das cordas, no desejo invencível de seguir a canção.

Porém tinha sido bem amarrado, e seus companheiros que remavam não escutavam os cânticos em razão da cera abundante que lhes roubava a audição.

Assim os nautas venceram os dois cabos, o Argentário e o Piombino, prosseguindo a navegação em águas já distantes do perigo representado pelas sereias.

Ilustração retirada de vaso grego conta o episódio.

E surpreendentemente mostra as sereias: mulheres pássaros.

Sim, mulheres pássaros.

Filhas do rio Aqueló com a musa Calíope, seres da mitologia grega.

As moças, desoladas com o rapto de Proserpina, levada a força como esposa de Plutão, pediram asas aos deuses para que pudessem procurá-la por toda a terra.

Não encontraram Proserpina na superfície do planeta, pois esqueceram que o reino de Plutão era subterrâneo.

Terminada a busca infrutífera, meio mulheres e meio aves, passaram a ocupar os rochedos escarpados entre a ilha de Capri e o litoral da Itália.

As sereias não são representadas nem descritas como mulheres-peixe por nenhum autor realmente antigo, seja em textos, desenhos ou pinturas.

Possuem cabeça, torso feminino e asas e caudas de pássaros.

Os braços, além das asas, empunham instrumentos musicais: liras, flautas, gaitas campestres ou até mesmo partituras.

As mulheres-peixe da mitologia grega não são sereias, são nereidas, divindades gregas filhas de Nereu. As versões masculinas das nereidas foram os tritões, homens- peixe.

Na nossa obra chamada Nekiya, a Viagem do Herói ao País dos Mortos, os heróis que no ano de dois mil e dez navegavam barco do tempo da idade de bronze e tentavam repetir a viagem de Ulisses, tiveram encontro com as sereias, nas proximidades da ilha de Giglio:

“De repente o mar ficou calmíssimo, liso como a água de uma piscina.

As aves marinhas pareciam alvoroçadas, gorjeando e emitindo gritos estridentes e às vezes zombeteiros.

Voavam sobre as nossas cabeças com as asas rufando e seus corpos lançados em mergulho sibilavam estranhamente contra o ar parado.

As patas encolhidas das gaivotas formavam silhuetas de linhas fortes sobre a transparência luminosa das caudas emplumadas, abertas ao sol da manhã.

As grandes asas brancas, debruadas de negro, se agitavam repentinamente, depois se abriam em vôo planado enquanto as aves flutuavam no ar, lançadas em grande velocidade.

Parecia que às gaivotas argênteas associavam-se no vôo as águias pescadoras e as fragatas.

Estas, com dois metros e trinta de envergadura das asas, traçavam acrobacias ousadas, voando pouco mais acima das outras aves e evitando cuidadosamente as águas.

Algumas planavam contra o vento que começava a surgir da terra, imóveis, sem estremecer um só músculo.

No meio da confusão de gritos, sons, movimentos e cores destacavam-se robustas massas escuras sustentadas por enormes asas que pairavam e batiam em grande velocidade ou muita lentidão, misturando-se em caleidoscópios de fragmentos coloridos, mudando de forma a cada instante, impossibilitando o registro visual do detalhe.

Musico de ouvido treinado, Bernard foi o primeiro a perceber, numa espécie de canto gregoriano, as vozes femininas cantando em coro e mescladas ao alarido das aves marinhas.

Entretanto nossa embarcação, levada pelas ondas, pairava no mar oleoso.

Logo a arrebentação começou a soar mais forte e apareceram vagalhões vindos do mar alto levantando o barco e o carregando como graveto.

Começamos a perceber os rochedos em volta.

Eu e Bernard corremos em direção ao leme, para inverter a direção.

Porém as vozes cantavam docemente e nós paramos para escutá-las.

Enquanto isso aves gigantescas mergulhavam sobe as nossas cabeças, tão rápidas que só podíamos vislumbrar o turbilhão de penas e de asas, manchas coloridas desfocadas, afastando-se para o alto e novamente aproximando-se, em loucas picadas velozes.

- Sereias! Gritou Bernard. Tapem os ouvidos com as mãos... Vamos bater e naufragar!

Cavo e tenebroso o som do casco de madeira chocando-se rijamente contra a rocha viva acendeu uma faísca de razão em minha mente...”

Porém os navios modernos são governados por parafernália eletrônica de respeito.

GPS’s e computadores totalmente imunes aos cânticos das sereias.

Informado sobre o naufrágio do navio Costa Concórdia, ao encalhar nas areias da ilha de Giglio, lembrei imediatamente de Homero, de Ulisses, do meu livro e das sereias.

Naufrágio que ocorreu numa rota percorrida há milênios pelos romanos.

Será que os computadores de bordo sofreram pane de navegação e lançaram o transatlântico sobre a praia?

Ou alguém quatro mil anos depois, esqueceu das precauções de navegação recomendadas por Homero, o senhor do mito, e sucumbiu ao mavioso canto das sereias?

Tenho uma certeza: jamais saberemos da verdade.

Larry Coutinho