terça-feira, 23 de agosto de 2011

O sonho de todos nós: Xanadu - Crônicas da cidade plural.

Nunca sei se o grande escritor argentino Jorge Luís Borges fala sério quando faz um relato histórico ou simplesmente recria a verdade, com sua maneira travessa e fantástica de tratar a realidade.
Entretanto Samuel Taylor Coleridge tem consistência real. Foi literato e poeta inglês (1772-1834) e autor, por exemplo, de Baladas líricas e de Baladas do antigo marinheiro, os primeiros grandes poemas da era romântica. Mais tarde Coleridge escreveu o poema simbólico Kubla Khan.
Onde encontrei a primeira referência literária a Xanadu:

“In Xanadu did Kubla Khan
A stately pleasure dome decreei
Where Alph, the secred river, ran
Trough caverns measureless to man
Dow to a sunless sea (...)”

Xanadu (Shang-tu), em Coleridge, é uma região na qual o imperador chinês Kubla Khan (1215-1294) construiu o palácio sobre o qual havia sonhado anteriormente.
E o poema reveste-se de “fantasmagoria onírica, entremeando forma e sentido em hipnótica geografia de cintilantes epifanias”.
Segundo Borges, no verão de 1797, retirado no campo inglês numa tarde langorosa e crepuscular o poeta Coleridge cochilava. Ia embalado por uma forte dose de láudano (extrato de ópio que possui efeito sedativo), enquanto lia um relato no Purchar’s Pilgrimage que tratava da construção do célebre palácio.
Finalmente Coleridge adormeceu, e em sua semiconsciência a descrição lida transformou-se numa cornucópia de imagens iridescentes, refletindo todas as cores do arco íris.
Ao acordar Coleridge concebeu um poema de trezentos versos e começou a escrevê-lo em seguida.
Entretanto, depois de estruturar perto de cinqüenta versos, foi interrompido por um visitante. Quando retornou trabalho verificou que as idéias decorrentes do sonho - e do láudano - se haviam dissipado.
Restaram os cinqüentas estupefacientes versos que formam o poema.
Interessa-me o momento vivido por Coleridge que transformou o palácio de cal e pedra em transe espiritual, em essências imateriais, em música sublime, que foram os alicerces sobre os quais ele reergueu literariamente o fulgurante palácio de Kubla Khan.
A segunda menção a Xanadu veio para mim em tempos de menino. No Gibi mensal.
Mandrake, o mágico. Um herói das histórias em quadrinhos que combatia o mal utilizando apenas truques e sugestões hipnóticas.
Mandrake vivia em Xanadu - uma rica propriedade mágica que o herói ganhara de presente de um amigo milionário - em companhia de Lothar, um africano fortíssimo, Hojo, o cozinheiro chinês gorducho e faixa-preta de karatê e Darla, a namorada de Lothar.
A terceira vez em que me deparei com o nome Xanadu foi no filme de Orson Welles (1915-1985) chamado Cidadão Kane (1941).
Fabulosa residência de Kane, um magnata da industria editorial, Xanadu superava tudo o que a imaginação exacerbada poderia criar. Era a maior e mais cara construção destinada à moradia de um homem que vivia praticamente só.
Xanadu guardava as obras de arte da coleção eclética de Kane, e também milhares de objetos soberbos frutos maiúsculos da criatividade humana. A coleção de animais transformou o Xanadu proposto por Orson Welles no maior zoológico particular do mundo.
A imagem cinematográfica de Xanadu foi desenhada por Mario Larringa. Misturou épocas e estilos, o castelo do monte Saint-Michel, na França, com uma parte do campanário da catedral de San Marco, em Veneza e adicionou as arcadas do palácio Pitti em Florença, tudo temperado com toques góticos de origem inglesa e com interior medieval italiano.
Entretanto, os Xanadus, reais ou imaginários, não são exceção. Quantos imperadores, magnatas, guerreiros, ou presidentes já sonharam e foram tomados por transe espiritual que os levou a construir palácios de cal e pedra, imaginando-os como essências imateriais, porém cascas sólidas e inexpugnáveis capazes de armazenar e proteger não só imensas quantidades de bens materiais, mas também as ilusões metafóricas ou talvez resguardar a música das esferas... Ou outras alucinações de igual porte, incluindo sonhos e sensações.
Misteriosamente esses arroubos arquitetônicos não gozam de muita popularidade e colecionaram inúmeros inimigos.
Em Minas Gerais, São João do Nepomuceno, Edmar Moreira construiu o seu Xanadu. Um castelo magnífico.
Infelizmente para ele, Edmar Moreira era deputado e os politicos opositores ao saberem da existência do palácio cairam de pau sobre o lombo do risonho castelão.
Edmar Moreira deve ter sofrido o mesmo que os nobres cidadãos de Florença, então próspera e culta cidade da Itália.
Quinhentos e dezesseis anos antes de Edmar Moreira construir o seu castelo, um soturno padre Dominicano, a quem chamavam, em latim de Hieronymus, e em italiano de Girolamo, andava perturbando a vida dos nobres de Florença.
Com preocupação o papa Alexandre VI via as atividades daquele padre atacando a sociedade que julgava imoral através da destruição de objetos.
Florença era uma cidade onde a arte, a literatura e a poesia deslanchavam.
Então o padre Hieronymus (Dominicano), que passou à história sendo mais conhecido pelo sobrenome Savanarola (final do século quinze), inventou as crudelíssimas fogueiras da vaidade.
O encontro final dos objetos com o fogo!
Depois de vociferar contra a Renascença, Savanarola montou grupos de arruaceiros que invadiam casas e palácios, coletando livros e objetos considerados por ele como arte imoral.
Os bandidos batiam de casa em casa, arrecadando objetos propícios à lassidão moral: espelhos, imagens, pinturas, cosméticos, livros, jogos de gamão, jogos de xadrez, violinos e outros instrumentos musicais, vestidos luxuosos, chapéus femininos, obras de poetas, e tudo o mais para ser queimado nas colossais fogueiras, principalmente na Piazza Della Signoria.
Talvez até mesmo magníficas pinturas de Sandro Boticelli e Michelangelo Buonarroti.
Toda a rica presa era empilhada em uma determinada praça de Florença, e, ao formar monte apreciável, Savanarola acendia o fogo e a população assistia, perplexa, a terrível fogueira a queimar não só preciosidades literárias e artísticas, mas também o rico legado cultural da cidade.
Entre os objetos selecionados por Savanarola para serem destruídos estavam as caixas de maquilagem, usadas indiferentemente por homens e mulheres da cidade. E trajes, vestidos femininos e roupas masculinas.
Finalmente o fogaréu era legitimado pelo populacho, que entoava em transe e em uníssono as canções da fogueira.
E dali em diante as suntuosas Xanadus florentinas jaziam mortas como cascas vazias e silenciosas.
Talvez porque existia - e ainda existe - a idéia de que residências suntuosas e incomuns deviam ser necessariamente resultado de roubo ou de furto.
Algumas certamente serão, porém confesso que, mesmo não dispondo de recursos para o cometimento, sonho com uma casa onde férias permanentes com a minha família sejam sempre encantadas.
Matas, picadas para passeios, lagos cristalinos, cachoeiras... piscinas, churrasqueiras, fornos para pizza, campo oficial de futebol, quadra de tênis ... Biblioteca, discoteca ... Cinema privado e enormes coleções de filmes à disposição...Um salão especial para exibição de pinacoteca completa, toda em arte naif ... Bilhar, ping-pong, bicicletas, cavalos mansos e marchadores...
Em outras palavras, eu desejo ser o senhor de um Xanadu particular. Como já informou sensatamente o compositor popular:

“Eu quero uma casa no campo
Onde possa compor muitos rocks rurais (...)”

Acho que não sou o único.
Os exemplos estão por toda parte.
No cinema, a mansão a beira mar do grande Gatsby, com suas festas de arromba, belas reuniões sociais, bailes inesquecíveis.
Na Europa, quatrocentos e cinqüenta fabulosos castelos podem ser alugados. Na Inglaterra, Escócia, Irlanda, Alemanha, França, Itália...
Aqui mesmo, sem sair da cidade de São Paulo, noivos e noivas podem ter seus momentos de senhores de castelos: no Palacio dos Cedros, na Casa de Cultura Julieta de Serpa, no complexo da antiga estação ferroviária Julio Prestes, na Casa das Retortas...
O castelo de Simões Lopes, da Ilha Fiscal, de Itaipava, o castelo do Batel, o castelo do Bivar... Colocam o Rio Grande do Sul, o Rio de Janeiro, o Paraná, o Rio grande do Norte no mapa dos locais onde existem castelos suntuosos.
Entretanto nenhum deles absorveu o espírito de Xanadu como fez o castelo do Zé dos Montes, que fica no Rio Grande do Norte, quase no topo da serra Tapuia.
É o castelo cuja fotografia ilustra este escrito.
Imensa construção erguida entre enormes rochas, parece ter sido concebido e edificado na exata mistura entre arquitetura e alucinação.
A profusão de torres aparentemente inúteis sob o aspecto funcional justifica o destempero necessário para que alguém lance todos os seus dados numa única e louca jogada.
E nem sempre é necessário possuir grande fortuna.
Certos monges budistas do Nepal conseguem construir palácios imaginários riquíssimos em detalhes e conforto.
E quando colocam o produto da mente no mundo em que vivemos, dizem conseguir castelos reais, que todos podem habitar sem suspeitar de que se tratam de tiulpas, isto é, objetos imateriais criados pela mente e projetados no cotidiano das pessoas.
Enquanto arqueólogos procuram o significado histórico, arqueológico, econômico ou funcional das pirâmides, dos Stoneages da vida, dos castelos de Tintagel ou coisa que o valha, estou certo de que a explicação está clara na experiência literária de Coleridge: o que motiva a construção de tais monumentos votivos nada mais é do que a ambição e o sonho alucinante que brota do fundo da alma de certos malucos geniais. Algumas vezes temperados por dose maciça de láudano.
Entretanto castelos podem ser bem mais modestos.
Muitas pessoas habitam apenas quatro paredes e telhado sem forro. Ou ambientes de convivência difícil e hostil. Vocês entendem o que estou dizendo.
Então nada mais compensador para a alma do que combater o marasmo das insípidas tardes de domingo programando e executando viagens encantadas aos shoppings center’s, os modernos Xanadus dos pobres.
Larry Coutinho

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