domingo, 15 de janeiro de 2012

Costa Concórdia, o naufrágio, Ulisses e as sereias: a realidade e o mito. - Crônicas da Cidade Plural.

Na região do mar Tirreno que cobre a distância entre a ilha da Córsega e a costa italiana estende-se a área oceânica de domínio das sereias.

E ali fica a Ilha das Sereias, citada por Homero e de nebulosa localização.

A barca que zarpar do porto de Civitavecchia, a noroeste de Roma, logo navegará por entre as ilhas de Monte Cristo, Giglio, Pianosa, Elba e Capraia.

Além de muitas ilhotas e rochedos.

Em uma daquelas pequenas porções de terra habitam as sereias.

No continente, a área fica demarcada por dois cabos, o Argentário, ao sul, e o Piombino, a noroeste.

O barco que demandar o mar Ligúrico em busca dos portos de Livorno, Gênova ou Mônaco cruzará, por obrigação imposta pela rota ancestral, os estreitos entre o cabo Argentário e a ilha de Giglio e, um pouco depois, o estreito entre o cabo Piombino e a ilha de Elba.

Por ali passaram quatro mil anos de navegação romana.

Recitando em público, o rapsodo Homero contava em versos sobre as precauções que deveriam ser tomadas pelo navegador que empreendesse viagem marítima pela região, desde dois mil anos antes do nascimento de Jesus Cristo.

Não foi diferente com Ulisses.

Prevenido pela feiticeira Circe do sortilégio das sereias, do seu canto mavioso e do seu maravilhoso vergel, Ulisses preparou a cera com que vedou os ouvidos de todos os seus marinheiros.

Em seguida pediu que lhe atassem os pulsos e os tornozelos ao mastro.

Assim preparados, os companheiros, sentados, feriram com os remos o mar cinzento.

Quando o canto das sereias começou a seduzir Ulisses, o único cujos ouvidos não tinham sido vedados com cera, ele forcejou para livrar-se das cordas, no desejo invencível de seguir a canção.

Porém tinha sido bem amarrado, e seus companheiros que remavam não escutavam os cânticos em razão da cera abundante que lhes roubava a audição.

Assim os nautas venceram os dois cabos, o Argentário e o Piombino, prosseguindo a navegação em águas já distantes do perigo representado pelas sereias.

Ilustração retirada de vaso grego conta o episódio.

E surpreendentemente mostra as sereias: mulheres pássaros.

Sim, mulheres pássaros.

Filhas do rio Aqueló com a musa Calíope, seres da mitologia grega.

As moças, desoladas com o rapto de Proserpina, levada a força como esposa de Plutão, pediram asas aos deuses para que pudessem procurá-la por toda a terra.

Não encontraram Proserpina na superfície do planeta, pois esqueceram que o reino de Plutão era subterrâneo.

Terminada a busca infrutífera, meio mulheres e meio aves, passaram a ocupar os rochedos escarpados entre a ilha de Capri e o litoral da Itália.

As sereias não são representadas nem descritas como mulheres-peixe por nenhum autor realmente antigo, seja em textos, desenhos ou pinturas.

Possuem cabeça, torso feminino e asas e caudas de pássaros.

Os braços, além das asas, empunham instrumentos musicais: liras, flautas, gaitas campestres ou até mesmo partituras.

As mulheres-peixe da mitologia grega não são sereias, são nereidas, divindades gregas filhas de Nereu. As versões masculinas das nereidas foram os tritões, homens- peixe.

Na nossa obra chamada Nekiya, a Viagem do Herói ao País dos Mortos, os heróis que no ano de dois mil e dez navegavam barco do tempo da idade de bronze e tentavam repetir a viagem de Ulisses, tiveram encontro com as sereias, nas proximidades da ilha de Giglio:

“De repente o mar ficou calmíssimo, liso como a água de uma piscina.

As aves marinhas pareciam alvoroçadas, gorjeando e emitindo gritos estridentes e às vezes zombeteiros.

Voavam sobre as nossas cabeças com as asas rufando e seus corpos lançados em mergulho sibilavam estranhamente contra o ar parado.

As patas encolhidas das gaivotas formavam silhuetas de linhas fortes sobre a transparência luminosa das caudas emplumadas, abertas ao sol da manhã.

As grandes asas brancas, debruadas de negro, se agitavam repentinamente, depois se abriam em vôo planado enquanto as aves flutuavam no ar, lançadas em grande velocidade.

Parecia que às gaivotas argênteas associavam-se no vôo as águias pescadoras e as fragatas.

Estas, com dois metros e trinta de envergadura das asas, traçavam acrobacias ousadas, voando pouco mais acima das outras aves e evitando cuidadosamente as águas.

Algumas planavam contra o vento que começava a surgir da terra, imóveis, sem estremecer um só músculo.

No meio da confusão de gritos, sons, movimentos e cores destacavam-se robustas massas escuras sustentadas por enormes asas que pairavam e batiam em grande velocidade ou muita lentidão, misturando-se em caleidoscópios de fragmentos coloridos, mudando de forma a cada instante, impossibilitando o registro visual do detalhe.

Musico de ouvido treinado, Bernard foi o primeiro a perceber, numa espécie de canto gregoriano, as vozes femininas cantando em coro e mescladas ao alarido das aves marinhas.

Entretanto nossa embarcação, levada pelas ondas, pairava no mar oleoso.

Logo a arrebentação começou a soar mais forte e apareceram vagalhões vindos do mar alto levantando o barco e o carregando como graveto.

Começamos a perceber os rochedos em volta.

Eu e Bernard corremos em direção ao leme, para inverter a direção.

Porém as vozes cantavam docemente e nós paramos para escutá-las.

Enquanto isso aves gigantescas mergulhavam sobe as nossas cabeças, tão rápidas que só podíamos vislumbrar o turbilhão de penas e de asas, manchas coloridas desfocadas, afastando-se para o alto e novamente aproximando-se, em loucas picadas velozes.

- Sereias! Gritou Bernard. Tapem os ouvidos com as mãos... Vamos bater e naufragar!

Cavo e tenebroso o som do casco de madeira chocando-se rijamente contra a rocha viva acendeu uma faísca de razão em minha mente...”

Porém os navios modernos são governados por parafernália eletrônica de respeito.

GPS’s e computadores totalmente imunes aos cânticos das sereias.

Informado sobre o naufrágio do navio Costa Concórdia, ao encalhar nas areias da ilha de Giglio, lembrei imediatamente de Homero, de Ulisses, do meu livro e das sereias.

Naufrágio que ocorreu numa rota percorrida há milênios pelos romanos.

Será que os computadores de bordo sofreram pane de navegação e lançaram o transatlântico sobre a praia?

Ou alguém quatro mil anos depois, esqueceu das precauções de navegação recomendadas por Homero, o senhor do mito, e sucumbiu ao mavioso canto das sereias?

Tenho uma certeza: jamais saberemos da verdade.

Larry Coutinho

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