Que Nossa Senhora é uma só não há dúvida.
Entretanto no bairro do Bexiga, em São Paulo, os cravos vermelhos e voadores que cobrem a rua Treze de Maio durante os meses de agosto reforçam a idéia de certa exclusividade religiosa presente em alguns povos cristãos.
Pois se trata de uma Nossa Senhora especial: a Achiropita.
Cuja devoção é comemorada no dia 15 de agosto, dia da Assunção de Nossa Senhora.
Maria Achiropita: a-kirós-pita, ou seja, não pintada por mãos humanas. Sabendo que kirós em grego significa mão, suponho ser este o idioma revelado por aquela frase.
Embora a origem mais remota desta Nossa Senhora venha do oceano.
A promessa de construir um santuário em Rossano Cálabro, na Calábria, surgiu logo após tempestade no mar.
No ano de 580 o capitão Maurício foi apanhado com seu primitivo veleiro por uma grande tempestade.
Naqueles tempos pretéritos a humanidade ainda aprendia a navegar e quando os elementos em fúria assumiam o controle das embarcações os capitães e os marinheiros costumavam passar o comando para os Santos ou para Nossa Senhora.
O próprio Cristóvão Colombo, perto de novecentos anos depois, quando navegava em águas do Atlântico, rezou e enfiou a mão em um saco contendo feijões marcados, para sortear quem dentre os tripulantes levaria velas à Virgem Maria, caso escapassem do mar em fúria.
Para quem gosta de saber os finais, revelo que o sorteado foi o próprio Colombo.
Porém, em 580, o capitão Maurício conseguiu salvar o barco, e sabendo que não tinham sido os ventos que levaram a embarcação para aquele porto seguro, mas sim a Virgem Maria, construiu ali um santuário.
O artista contratado para pintar a imagem de Maria não conseguia entender certo acontecimento coberto do mais profundo mistério: tudo o que ele pintava durante o dia era apagado no silêncio da noite.
Finalmente desistiu. A Igreja inacabada foi fechada e colocado um vigia.
Tarde da noite uma mulher carregando no colo uma criança pediu para entrar e rezar.
O vigia franqueou a passagem.
Na manhã seguinte, ao abrir a igreja, o vigia viu as imagens da mulher e do menino estampadas no lugar da pintura.
Certamente pintada por mãos não-humanas: a-kirós-pita.
Essas histórias e lendas construíram devoções Marianas diversas.
Nossa Senhora da Aparecida, no Brasil, cuja imagem surgiu na rede de pescadores; Nossa Senhora do Guadalupe, revelada através da impressão mágica da imagem num poncho indígena; Nossa Senhora de Fátima, a das revelações às três crianças; Nossa Senhora de Lourdes, que apareceu numa gruta; Nuestra Señora del Cobre, em Cuba; La Virgen Nera dei Miraculi, na Basilicata; Nossa Senhora da Cabeça, na Espanha (já foi objeto de considerações neste Blogue); e inúmeras outras Nossas Senhoras existentes pelo mundo afora.
Maravilhosa demonstração da necessidade que as pessoas têm de acreditar em coisas mais confortadoras para a alma do que a própria realidade circundante.
Isto em literatura chegou a criar uma corrente literária: o idealismo.
E quando no final do ano de 2010 fotografei os preparativos feitos pela comunidade daquele bairro pobre da cidade de São Paulo para a glória e o bom desempenho da 84a. Festa da Nossa Senhora Achiropita, eu percebi o enorme trabalho que tudo aquilo exigia.
E, mais do que isso, quase pude pesar e tocar com as mãos a profunda fé que justificava aquelas doações pessoais tão significativas.
Então uma imagem borrada surgiu em minha mente, vinda do fundo dos tempos.
Eu era bem mais jovem e tentava percorrer a pé os quase duzentos quilômetros do Caminho do Sol.
Antes de começar a caminhada, passei dois ou três dias em Santana do Parnaíba.
Sem ter o que fazer procurei fotografar a cidade tão fotogênica.
Encontrava-me na igreja, pensando no que fotografar.
Na praça lá fora grupos de escolares passavam, barulhentos e alegres.
A nave estava deserta e algumas velas acesas enchiam o ar do cheiro de parafina queimada.
Entrou uma menina de seus treze anos, uniformizada e carregando uma pequena mochila.
Dirigiu-se para um altar lateral.
A imagem era a de Nossa Senhora das Dores.
E assim mesmo, em pé, ela começou a conversar com a Santa.
Sussurrava e não consegui entender o que dizia.
Entretanto estava tão absorta naquela comunhão de almas com a Virgem Maria que não me viu.
Nem mesmo quando fotografei a cena por diversas vezes.
Em determinado momento a menina começo a chorar, silenciosamente.
As lágrimas escorriam do rosto da jovem, magrinha e de expressão sofrida.
Ajoelhou, colocou o rosto entre as mãos e rezou.
Depois, terminada a reza, consultou o relógio de pulso, suspirou um desalento, levantou-se e deixou a igreja.
Com enorme dignidade.
Mais tarde, ao revelar o filme, verifiquei que as fotos eram magníficas. Talvez as melhores da minha vida. O rosto ansioso e de expressão dolorida, marcada por fios de lágrimas, suplicavam por um átimo que fosse de solidariedade.
Envergonhado com aquela quebra tão brutal da intimidade, coloquei as fotos em uma caixa e lá as esqueci, como deve ser.
E ali, no torvelinho dos preparativos para a festa da Achiropita, por entre panelas, caixas, volumes, carros e pequenos caminhões eu contemplei a comunidade ocupada, ouvi com atenção o burburinho, destaquei risos e xingamentos afetuosos ou irados, separei frases e de repente percebi que estava novamente penetrando na intimidade das pessoas, em algo mais profundo do que a própria paisagem mostrava.
Novamente envergonhado, guardei a câmara e fui almoçar numa pequena cantina.
Macarrão com bracholas.
Entretanto no bairro do Bexiga, em São Paulo, os cravos vermelhos e voadores que cobrem a rua Treze de Maio durante os meses de agosto reforçam a idéia de certa exclusividade religiosa presente em alguns povos cristãos.
Pois se trata de uma Nossa Senhora especial: a Achiropita.
Cuja devoção é comemorada no dia 15 de agosto, dia da Assunção de Nossa Senhora.
Maria Achiropita: a-kirós-pita, ou seja, não pintada por mãos humanas. Sabendo que kirós em grego significa mão, suponho ser este o idioma revelado por aquela frase.
Embora a origem mais remota desta Nossa Senhora venha do oceano.
A promessa de construir um santuário em Rossano Cálabro, na Calábria, surgiu logo após tempestade no mar.
No ano de 580 o capitão Maurício foi apanhado com seu primitivo veleiro por uma grande tempestade.
Naqueles tempos pretéritos a humanidade ainda aprendia a navegar e quando os elementos em fúria assumiam o controle das embarcações os capitães e os marinheiros costumavam passar o comando para os Santos ou para Nossa Senhora.
O próprio Cristóvão Colombo, perto de novecentos anos depois, quando navegava em águas do Atlântico, rezou e enfiou a mão em um saco contendo feijões marcados, para sortear quem dentre os tripulantes levaria velas à Virgem Maria, caso escapassem do mar em fúria.
Para quem gosta de saber os finais, revelo que o sorteado foi o próprio Colombo.
Porém, em 580, o capitão Maurício conseguiu salvar o barco, e sabendo que não tinham sido os ventos que levaram a embarcação para aquele porto seguro, mas sim a Virgem Maria, construiu ali um santuário.
O artista contratado para pintar a imagem de Maria não conseguia entender certo acontecimento coberto do mais profundo mistério: tudo o que ele pintava durante o dia era apagado no silêncio da noite.
Finalmente desistiu. A Igreja inacabada foi fechada e colocado um vigia.
Tarde da noite uma mulher carregando no colo uma criança pediu para entrar e rezar.
O vigia franqueou a passagem.
Na manhã seguinte, ao abrir a igreja, o vigia viu as imagens da mulher e do menino estampadas no lugar da pintura.
Certamente pintada por mãos não-humanas: a-kirós-pita.
Essas histórias e lendas construíram devoções Marianas diversas.
Nossa Senhora da Aparecida, no Brasil, cuja imagem surgiu na rede de pescadores; Nossa Senhora do Guadalupe, revelada através da impressão mágica da imagem num poncho indígena; Nossa Senhora de Fátima, a das revelações às três crianças; Nossa Senhora de Lourdes, que apareceu numa gruta; Nuestra Señora del Cobre, em Cuba; La Virgen Nera dei Miraculi, na Basilicata; Nossa Senhora da Cabeça, na Espanha (já foi objeto de considerações neste Blogue); e inúmeras outras Nossas Senhoras existentes pelo mundo afora.
Maravilhosa demonstração da necessidade que as pessoas têm de acreditar em coisas mais confortadoras para a alma do que a própria realidade circundante.
Isto em literatura chegou a criar uma corrente literária: o idealismo.
E quando no final do ano de 2010 fotografei os preparativos feitos pela comunidade daquele bairro pobre da cidade de São Paulo para a glória e o bom desempenho da 84a. Festa da Nossa Senhora Achiropita, eu percebi o enorme trabalho que tudo aquilo exigia.
E, mais do que isso, quase pude pesar e tocar com as mãos a profunda fé que justificava aquelas doações pessoais tão significativas.
Então uma imagem borrada surgiu em minha mente, vinda do fundo dos tempos.
Eu era bem mais jovem e tentava percorrer a pé os quase duzentos quilômetros do Caminho do Sol.
Antes de começar a caminhada, passei dois ou três dias em Santana do Parnaíba.
Sem ter o que fazer procurei fotografar a cidade tão fotogênica.
Encontrava-me na igreja, pensando no que fotografar.
Na praça lá fora grupos de escolares passavam, barulhentos e alegres.
A nave estava deserta e algumas velas acesas enchiam o ar do cheiro de parafina queimada.
Entrou uma menina de seus treze anos, uniformizada e carregando uma pequena mochila.
Dirigiu-se para um altar lateral.
A imagem era a de Nossa Senhora das Dores.
E assim mesmo, em pé, ela começou a conversar com a Santa.
Sussurrava e não consegui entender o que dizia.
Entretanto estava tão absorta naquela comunhão de almas com a Virgem Maria que não me viu.
Nem mesmo quando fotografei a cena por diversas vezes.
Em determinado momento a menina começo a chorar, silenciosamente.
As lágrimas escorriam do rosto da jovem, magrinha e de expressão sofrida.
Ajoelhou, colocou o rosto entre as mãos e rezou.
Depois, terminada a reza, consultou o relógio de pulso, suspirou um desalento, levantou-se e deixou a igreja.
Com enorme dignidade.
Mais tarde, ao revelar o filme, verifiquei que as fotos eram magníficas. Talvez as melhores da minha vida. O rosto ansioso e de expressão dolorida, marcada por fios de lágrimas, suplicavam por um átimo que fosse de solidariedade.
Envergonhado com aquela quebra tão brutal da intimidade, coloquei as fotos em uma caixa e lá as esqueci, como deve ser.
E ali, no torvelinho dos preparativos para a festa da Achiropita, por entre panelas, caixas, volumes, carros e pequenos caminhões eu contemplei a comunidade ocupada, ouvi com atenção o burburinho, destaquei risos e xingamentos afetuosos ou irados, separei frases e de repente percebi que estava novamente penetrando na intimidade das pessoas, em algo mais profundo do que a própria paisagem mostrava.
Novamente envergonhado, guardei a câmara e fui almoçar numa pequena cantina.
Macarrão com bracholas.
Larry Coutinho
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