Na língua portuguesa o “ai” é uma interjeição que geralmente exprime lamento, dor, mas também pode expressar alegria, felicidade, excitação...
A interjeição não deve ser confundida com o advérbio “ai”, que serve para designar o lugar onde está a pessoa a quem se fala.
Por sua vez, o “ah” é outra interjeição com significado mais amplo, embora na mesma direção do “ai”: impaciência, compaixão, dor, pesar, ironia, assombro, alivio, duvida, desejo, admiração, alegria...
Ao saber pela pesquisadora Alicia Medeiros (el Flamengo, editorial Acento, Madrid) sobre as dimensões do “ay!” utilizado no canto flamengo da Andaluzia, comecei exercício mental de reconhecimento do uso da interjeição no cancioneiro popular brasileiro.
Eis, em tradução pobre e apressada, o que Alicia revela:
“Esse “ai!”, palavra espantada, desgarrada e rebelde que ainda não encontrou o grafismo exato, é na realidade a dimensão maiúscula do flamengo, donde brota a grandeza trágica de um povo que representa assim os pináculos da raiva e da ira. É o homem esfarrapado, destruído, a mão que não encontra um ombro amigo”.
Para quem não sabe, o flamengo é um gênero musical da Espanha. Mais do que da Espanha, da Andaluzia, provindo de raízes judias, árabes e ciganas.
Região sul do país por onde a cultura árabe passeou vitoriosa durante oito séculos e depois foi expulsa. Os remanescentes sofreram humilhações e pagaram caros impostos ao rei para manter os privilégios. Terras por onde os ciganos carregaram seu nomadismo trágico. Aldeias onde os judeus viveram o destino incerto dos povos oprimidos, forçados a adotarem a religião católica para não perecerem nas garras cruéis da Santa Inquisição.
Os cristão-novos...
E as três etnias adotaram como delas a copla andaluza, repleta de dores e de queixas, o canto flamengo, onde o “ay!” inicia a canção ou surge espontaneamente em intervalos aleatórios.
Como disse Rafael Cansinos: “- A copla (andaluza) é um canto dos parias que alguma vez foram príncipes e continuam se sentindo como tais”.
E continua Alicia Mederos: “ É por isso que a letra fica diluída nas queixas do cantor, e que chega até mesmo ininteligível aos ouvidos de quem a escuta, de quem a sente. Não acredite que a letra da canção não tem importância ou que ela ocupa lugar secundário. Pelo contrário, essa letra ininteligível é um destroço, uma parte destacada da angustia do próprio cantor. É a verdade que levanta a canção (...)”.
No século XIX, quando espanhois migraram para a Argentina, levaram com eles esse sentido de pena, queixa, e angustia existentes no cancioneiro que seguia junto.
Imigrantes de Almeria, Cádiz, Cordoba, Granada, Huelva, Málaga e Sevilha, enfim de toda a Andaluzia, que ajudaram a dar ao tango-canção platino todo o sentido trágico do “ay!” flamengo.
Desta vez na nostalgia dos imigrantes obrigados a viver longe da terra natal, dos amores desfeitos, das angustias existenciais, das traições conjugais...
Em 1985, estampada no jornal “La Razón”, numa entrevista concedida pelo escritor argentino Borges a Armando Otamendi, chamada “Borges y los juegos por dinero”, encontrei o seguinte:
“O tango não me agrada, pois é uma decadência da milonga. A milonga, ao contrário, é um desafio, enquanto o tango é sentimental, e eu detesto o sentimentalismo. Como dizem no Brasil, o tango é o lamento dos cornudos.”
Naquele recorte antigo pensei ter encontrado o lugar do cancioneiro mundial onde se escondia o “ay!” andaluz.
O argumento pareceu-me forte e definitivo.
Marquei o texto e fiquei esperando alguém com quem pudesse comentar o assunto.
Porém coloquei o jornal sobre uma estante do meu escritório.
Exatamente a que abriga todos os discos brasileiros de samba-canção, da década de 50.
Relembrei algumas das letras, revi mentalmente a obra de Lupicínio Rodrigues: “Eu gostei tanto, tanto, quando me contaram...”, murmurei algumas das minhas canções favoritas, e cheguei a Dolores Duran.
E o “ai!” surgiu, em todo o seu esplendor.
“Ternura Antiga”, Dolores Duran e Ribamar.
“Ai, a rua escura, o vento frio / esta saudade, este vazio / esta vontade de chorar.../ Ai, esta amargura, esta agonia.../ esta ternura tão antiga / e o desencanto de esperar.../ Sim, eu não te amo por que quero... / Ai, se eu pudesse esqueceria / vivo, e vivo só por que te espero / Ai, esta amargura, esta agonia...”
“Leva-me Contigo”, Dolores Duran.
“Ai, leva-me contigo / pela noite eterna / da tua amargura/ deixa que eu te ofereça / todo este carinho / toda essa ternura...(...) /Ai, leva-me contigo / e perde a minha vida / quando te perderes (...)”
“Solidão” (samba-canção), Dolores Duran.
“Ai, a solidão vai acabar comigo / eu já não sei o que faço,/ o que digo,/ vivendo na esperança de encontrar / um dia um amor sem sofrimento (...) ./Ai, a solidão vai acabar comigo”.
“Por Causa de Você” (samba-canção), Antônio Carlos Jobim e Dolores Duran.
“Ai, você está vendo só / do jeito que fiquei, e que tudo ficou / uma tristeza tão grande / nas coisas mais simples / que você tocou. (...)”
Finalmente um baiano genial, saindo dos temas do amor desfeito e seguindo para a saudade do lugar de origem:
“Saudade da Bahia” (samba), Dorival Caymmi.
“Ai, ai que saudade eu tenho da Bahia !/ Ai, se escutasse o que mamãe dizia:/ Bem, não vá deixar a sua mãe aflita / a gente faz o que o coração dita,/ mas este mundo é feito de maldade, ilusão./Ai, se eu escutasse hoje não sofria,/ Ai, esta saudade dentro do meu peito!/ Ai, se ter saudade é ter algum defeito,/ eu pelo menos mereço o direito / de ter alguém com quem eu possa me confessar! (...)”.
Eis o “ay!” andaluz traduzido, torneado, adocicado, individualizado como deve ser, e que continuou a revelar a crise existencial profunda, a exclusão e o sofrimento.
E a saudade da terra natal!
Mais adiante encontrei a interjeição “ai!” modificado em “ah!”, e o tema alterado transforma a sensação de angustia e de dor em esperança e o desejo de alcançar o impossível:
“Eu e a brisa”, Johnny Alf
“Ah! Se a juventude que essa brisa canta / ficasse aqui comigo mais um pouco / eu poderia esquecer a dor de ser tão só pra ser um sonho (...)”.
Ao final, penso em duas possibilidades para tentar explicar o desaparecimento do “ai!” das canções: ou a humanidade não sofre mais, no que eu acho difícil de acreditar, ou o pudor e a necessidade de ocultar as fraquezas obrigou o homem moderno a esconder tudo aquilo que, através dos séculos, a humanidade canora revelou tão verdadeiramente através das letras, nas canções.
Larry Coutinho
São Paulo é um aglomerado de pequenas cidades do interior, às vezes até mesmo de aldeias de diversos países, que se juntam graças às avenidas que as ligam e sobra a impressão de ser uma única cidade colossal. Por sua vez, os pequenos bairros colocam-se em camadas diferentes do tempo. Alguns vivem no futuro, outros no século dezenove ... e cada um espia o outro!
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