Coração
enfartado, eu curtia as delicias e as incertezas da recuperação em cama de
hospital.
Em volta, as lindas gerações que andam por ai salvando o Brasil:
médicos, enfermeiras, auxiliares de enfermagem, lavadeiras, faxineiras,
técnicos de laboratório...
Gerações douradas, combativas, estudiosas, alegres e competentes.
Eis que no meio delas, linda menina se revelou originária do
Maranhão.
Contei uma das minhas histórias e recebi de volta a aterradora narrativa
sobre a lenda da Manguda, um fantasma que no final do século XIX assombrava a
região onde hoje fica a praça Gonçalves Dias, em São Luís.
A aparição era figura alva como um lençol, transportando estranha luz
na cabeça.
Em seguida a moça lembrou da carruagem de fogo de Ana Jensen.
Ana Jensen era rica e de presença marcante na vida social e política da São Luís do século XIX.
Entretanto passou à história afamada pela sua crueldade e pela forma
desumana com que tratava os seus escravos.
Depois da sua morte, certas ruas de São Luís passaram a receber, nas horas tardas das
noites, a carruagem de Ana Jensen, puxada por cavalos decapitados, cujas
ferraduras em ásperos choques com as pedras do pavimento produziam línguas de
fogo.
Quem conduzia a carruagem era um escravo, também decapitado e com o
corpo sangrando.
Suas passagens eram marcadas por sons horríveis, misturas aterradoras
de choques de ferragens e de gritos e coros de lamentações dos escravos.
Os habitantes da velha São Luís fugiam com medo de serem apanhados e
levados para o passado, para os tempos em que Ana Jensen reinava na sua mais
horrenda crueldade.
Na ocasião eu estava lendo
alguns livros, sobre os quais tratarei mais adiante.
Porém a narrativa da linda enfermeira fez-me lembrar de outro veículo
que também corria por ruas e vielas de Paris, capturando e transportando
pessoas, habitantes dos anos dois mil,
para o inicio do século, por volta de 1920.
Não era uma carruagem de fogo, mas um Renault 1920, amarelo, que
surgia percorrendo becos e vielas de Paris exatamente à primeira pancada da
meia noite.
Ao contrário da carruagem de fogo da Ana Jensen, que ninguém filmou,
este Renault foi artista de cinema e importante personagem no filme de Woody
Allen chamado Meia Noite em Paris.
Assistir ao filme (deve ser deixado para o fim), ler os livros , tudo
isto nos leva a profundo mergulho no alucinante mundo dos anos vinte
parisienses.
Ocasião em que James Joyce
(Ulisses) e o próprio Ernest Hemingway
modificaram profundamente a literatura, que depois deles nunca mais foi
a mesma.
Porém assistir o filme sem antes ler as obras indicadas não é tão bom
como fazer o contrário.
A leitura previa permitirá a quem assistir o filme a pronta
identificação dos personagens.
Quando, ao descer do Renault amarelo, o personagem do filme entrar em
uma festa, ao som alucinante de cantor e pianista que se esmera na
interpretação de Le’ts fall in love, será possível reconhecer imediatamente
Cole Porter, além de alguns convivas, por exemplo, Zelda e Scott Fitzgerald.
Enquanto isso, a leitura de Shekespeare and Company trará certa familiaridade com os Fitzgerald,
o senhor e senhora Ezra Pound, Sherwood Anderson , George Moore, Walt Witmann,
Jules Romains, Paul Valery e, é claro, James Joyce, uma vez que Sylvia
Beach foi a primeira pessoa com coragem
suficiente para editar Ulisses, um livro proscrito e proibido por diversos
países, entre os quais Estados Unidos e Inglaterra, os dois maiores mercados
literários da época.
Para saber muito mais:
Allen, Woody - Meia Noite em Paris. Filme de abertura do
Festival de Canes, Seleção Oficial. Dois recém casados observam profundas alterações
nas suas vidas graças às estranhas experiências que vivem em Paris, onde, como
se sabe muito bem, tudo pode acontecer.
Hemingway, Ernest. Paris é
uma festa. Editora Bertran. Brasil. 7a. edição, 2005. Esta obra cobre o
período de 1921 a 1926, em Paris.
Beach, Sylvia . Shakespeare and Company - Uma livraria na
Paris de entre-guerras. Rio de Janeiro, 2a. ed. Casa da Palavra. 2007. Fundada
no início dos anos vinte, a livraria foi ponto de encontro dos principais
artistas e escritores que habitavam Paris na época. Inclusive Ernest Hemingway.
Entre as três fontes acima citadas existe estreita e competente ligação. Por
exemplo, personagem de Meia Noite em Paris visita a livraria de Sylvia Beach e
revive cenas contadas por Ernest Hemingway.
Mclain, Paula - Casados com Paris - Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 2011. História de amor e traição do jovem casal Hemingway nos loucos
anos de 1920. Ao contrário dos outros dois livros, é um romance.
Texto escrito entre 6 e 10 de julho de 2012, leito número 5 do
Hospital Dante Pazzanese, São Paulo.
Larry Coutinho
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