sábado, 3 de setembro de 2011

O mito da igualdade - Crônicas da cidade plural

Livro é objeto.
Coisa em constante interação com os seres humanos.
Os seres humanos acham que não são objetos.
Como todo ser humano, o livro vive vida secreta de vez em quando.
E também acha que não é objeto.
É isso que aproxima os humanos dos livros: as vidas secretas.
O homem calado e o livro fechado.
Quando procurei pela obra de Manoel de Barros o “Livro sobre o nada” e não encontrei sabia que ela estava escondida, a espera da hora certa de reaparecer.
E foi hoje!
Bem escondida debaixo do “O castelo de âmbar”, do Mino Carta, na certeza que poderia ficar por ali, sem ser incomodada por muitos e muitos anos. (Sempre releio “O Castelo de âmbar” de três em três anos e ele fica diferente).
Peguei o Manoel de Barros que resolveu reaparecer e corri para a página cinqüenta e sete.
Ainda estava lá a frase, ou o verso, como você preferir:

“Também as latrinas desprezadas que servem para ter grilos dentro - elas podem um dia milagrar violetas”.

Reencontrar esses versos do mesmo jeito que os deixei, quinze anos atrás, revigoraram o amor pela humanidade e a fé em mim.
Versos que participam do poema número onze da segunda parte do livro, intitulada “Desejar ser”.
Com direito a epigrama de autoria do Padre Antônio Vieira, um fragmento do sermão “Paixões humanas”:

“O maior apetite do homem é desejar ser. Se os olhos vêem com amor o que não é, tem ser”.

Pronto!
Posso parar aqui mesmo e dar tempo ao leitor para destrinchar o bom Padre Vieira.
Aproveito a pausa para tentar eu também.
Ou então propor novo enigma, tirado do verso número um do nosso bom Manoel de Barros:

“Com pedaços de mim eu monto um ser atônito”.

Só isso, um verso que é ao mesmo tempo uma estrofe.


Sei que livros nunca são iguais uns aos outros.
Alguns soltam letras que entram pela goela do leitor e são excretadas pelas fezes.
Outros emanam letras flutuantes e gasosas.
Estas sobem para a cabeça, ficam esvoaçando em redor do cérebro como pedaços de neblina tocados pelo vento das serranias, amontoam-se em nuvens escuras e chovem.
Inicia-se aqui, com clarins e estandartes, o primeiro argumento para testar o mito ou a esperteza da igualdade anunciada.

O segundo argumento fluirá, estou certo, de outros versos que parecem pertencer ao Manoel de Barros, mas não pertencem.
Dele é apenas o estilo.
Os versos são meus. Eis o primeiro:

“O cantar do sabiá laranjeira nas madrugadas não presta para o silêncio”.

Eis o segundo:

“O sono do homem-que-mora-na-casa-ao-lado não presta para o sabiá”.

E vai também um terceiro, desta vez do Manoel de Barros, para subir o nível poético que pretendo dar a este escrito:

“De noite o silêncio estica os lírios”.

Ao amanhecer o homem-que-mora-na-casa-ao-lado correu para ver os lírios.
Percebeu que eles não estavam esticados e chamou a polícia.
O amor ou o ódio que duas pessoas diferentes podem dedicar ao sabiá laranjeira demonstram cabalmente que nem todos os homens são iguais.
E termino aqui, aspergindo e entrelaçando letras e idéias neste concurso que pretende testar o mito da igualdade.
Oportunamente o assunto voltará a nós.
Enquanto ele não chega, leia o Manoel de Barros, poeta que descobriu o aroma verde das lagartixas e que ele mesmo queria crescer pra passarinho...
“Livro sobre o nada”. Manoel de Barros. Ed. Record.



Larry Coutinho

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