Sobre insignificâncias lucrativas
Depois da briga no Pelourinho, Ernesto Anglicano experimentou a cadeia baiana.
Um inferno superlotado.
Entretanto conseguiu fazer amizade com certo preto velho que ao ser conduzido para uma prosa maluca sobre a vida secreta dos objetos, não só compreendeu Ernesto, como também lhe falou sobre as moedas dobradas do Pelourinho.
-Estão, todas elas, num buraco do muro da igreja de São Francisco. Naquela mata que fica atrás da igreja. Dá pra ver a cavidade pela janela da sacristia...
-Como foram parar lá?
-Dádivas dos peregrinos! As moedas eram dobradas e perdiam o valor de compra. Embora fosse crime de lesa-majestade danificar o dinheiro. As moedas que estão guardadas naquela cavidade e em outros lugares da Bahia são de prata, cobre e até mesmo de ouro ... perderam o valor como moedas, porém restou o valor do metal...
Ernesto Anglicano tinha conhecimento do costume medieval de sacrificar moedas para oferecê-las aos Santos, aos Anjos ou ao Espírito Santo, corrente na antiga Inglaterra.
Ele mesmo havia encontrado moedas de prata dobradas, na torre de Glastonbury e sabia que centenas delas tinham sido retiradas de riachos e poços sagrados.
Então lembrou que na sua juventude costumava colocar moedas nos trilhos dos bondes que subiam a rua Pamplona, em São Paulo.
Depois da passagem do pesado veículo, o grande desafio era o de encontrar as moedas dobradas, que às vezes saltavam para longe e costumavam desaparecer por entre as frinchas dos paralelepípedos.
Um inglês que havia comprado um lugar para sentar no chão da cela resolveu meter o bedelho na conversa.
O preto velho aproveitou para perguntar:
- Porque você foi preso, compadre?
- Alguém colocou alguma porcaria na minha bagagem de mão. Fui preso antes mesmo de subir no avião. Como você sabe, sou inocente.
- Aqui nesta cela não tem ninguém culpado! Arrematou Ernesto Anglicano, farejando proveitosa revelação.
- Na Inglaterra, mais precisamente em Yorkshire, onde se fabricava manteiga, as operárias dos laticínios costumavam manter uma moeda dobrada à mão, para o caso do creme obstinar-se em não virar manteiga. As moedas dobradas eram conhecidas como “talismãs da nata”. Também a literatura elisabetana está repleta de moedas dobradas, oferecidas às senhoras como prova de amor. Eram as famosas “moedas de quatro pences curvadas”.
- Não sei porque, quando eu penso em um tesouro, penso em moedas - lembrou Ernesto Anglicano - não consigo imaginar uma arca de piratas repleta com papel moeda!
- É verdade - lembrou o inglês - as moedas possuem uma espécie de sortilégio... Talvez devido ao metal em que são cunhadas...
- Hoje, aço inoxidável, bronze, latão ou alumínio - disse o negro velho - não valem muito!
- Porém, no passado, eram de ouro, prata ou cobre - acrescentou Ernesto Anglicano.
-As moedas de cobre, de quarenta réis, eram usadas na Bahia para tocar o berimbau - hoje desapareceram... esclareceu o preto velho, sem ser perguntado.
- Na Grécia antiga a alma de quem morria precisava atravessar o rio Estige para conseguir a paz no mundo inferior. Só havia um jeito: utilizar os serviços do barqueiro Caronte. Que cobrava a passagem em dinheiro corrente. Assim eram colocadas moedas na boca e nos olhos dos mortos... - o inglês revelava certa erudição.
-Você conhece bastante sobre moedas! Admirou-se Ernesto Anglicano.
- É que vivi delas por certo tempo - explicou o inglês - assim como ganhei muito dinheiro com o chamado “ouro velho”!
- O ouro envelhece? Perguntou o preto velho.
-Só na cabeça das mulheres - e o inglês riu.
- Como é que você ganhou dinheiro com moedas?
- Moedas tortas, perfuradas, desfiguradas ou com danos de qualquer natureza parecem ter perdido o valor de compra. Eu as trocava e pagava um centavo por qualquer uma delas. Depois as levava a um Banco. Ao recolher as moedas, o Banco fornecia um recibo. Depois de examinadas pelo Banco Central, as moedas danificadas eram destruídas e eu recebia o ressarcimento ... quase sempre pelo valor real das moedas! Algum tempo depois, eu percebi a fascinação que as moedas revelam pelas fontes, poços, cavidades inundadas...
- Por exemplo, a Fontana de Trevi? Ernesto Anglicano tentou adivinhar.
-Exatamente. Por alguma obscura razão as moedas levam os seres humanos a atirá-las nesses locais. São oferendas votivas. A prática pode datar à Idade de Bronze, quando certa deterioração climática fez com que os deuses do céu e da terra fossem substituídos por divindades aquáticas...
-Iemanjá! Exclamou o velho - nas viradas dos anos os baianos atiram quantidades assombrosas de moedas nas águas do mar, oferendas à rainha das águas, Dandalunda...
- Houve época, em Ubatuba, que eu fazia o mesmo - lembrou Ernesto Anglicano - certa passagem de ano, precisando de sorte, atirei nas ondas quantidade absurda de moedas...
-E deu certo? Interessou-se o inglês.
- Não. E no ano seguinte voltei, procurando recuperar algumas das moedas atiradas, em vão...
- Ouça - prosseguiu o inglês, eu estava em Londres quando a a velha Ponte de Londres era desmontada para ser levada para o Arizona. Então descobri que o leito do rio Tamisa, sob a ponte, estava atulhado por moedas imperiais. Consegui apossar-me de uma centena delas e as vendi, lentamente, em leilões de antiguidades. Com o resultado obtido consegui viver confortavelmente durante cinco ou seis anos. Também consegui vinte moedas com a efígie de Antonino Pio, do século dois, ano do Senhor, retiradas do poço celta dedicado à ninfa Coventina...de posse dessas informações e conhecimentos, quando cheguei ao Brasil, instalei alguns poços dos desejos em diversos shoppings centers. Consegui viver da coleta das moedas, até que fui denunciado por funcionários que desejavam o botim para eles. Depois houve aquela inflação galopante. O dinheiro que na véspera podia comprar, por exemplo, uma bicicleta nova, no dia seguinte mal dava para um maço de cigarros... uma moeda de cinqüenta centavos valia menos do que o seu peso em metal...troquei papel moeda por moedas pelo insignificante valor nominal, arranjei maquina que as furava no centro e passei a vender as moedas pelo dobro do valor, como arruelas para oficinas mecânicas ... Finalmente apareceu aquela porcaria na minha mala de mão e aqui estou eu...
-Ernesto Anglicano! - chamou o carcereiro.
Antes de atender ao chamado, Ernesto Anglicano passou um cartão de visitas ao inglês.
-Procure-me, quando sair daqui. Quero saber porque as pessoas dobram as moedas...e como, pois não é fácil dobrá-las!
(Trecho retirado do conto A Associação, in Ciprestes, casuarinas e riachos, de Coutinho, Larry)
Depois da briga no Pelourinho, Ernesto Anglicano experimentou a cadeia baiana.
Um inferno superlotado.
Entretanto conseguiu fazer amizade com certo preto velho que ao ser conduzido para uma prosa maluca sobre a vida secreta dos objetos, não só compreendeu Ernesto, como também lhe falou sobre as moedas dobradas do Pelourinho.
-Estão, todas elas, num buraco do muro da igreja de São Francisco. Naquela mata que fica atrás da igreja. Dá pra ver a cavidade pela janela da sacristia...
-Como foram parar lá?
-Dádivas dos peregrinos! As moedas eram dobradas e perdiam o valor de compra. Embora fosse crime de lesa-majestade danificar o dinheiro. As moedas que estão guardadas naquela cavidade e em outros lugares da Bahia são de prata, cobre e até mesmo de ouro ... perderam o valor como moedas, porém restou o valor do metal...
Ernesto Anglicano tinha conhecimento do costume medieval de sacrificar moedas para oferecê-las aos Santos, aos Anjos ou ao Espírito Santo, corrente na antiga Inglaterra.
Ele mesmo havia encontrado moedas de prata dobradas, na torre de Glastonbury e sabia que centenas delas tinham sido retiradas de riachos e poços sagrados.
Então lembrou que na sua juventude costumava colocar moedas nos trilhos dos bondes que subiam a rua Pamplona, em São Paulo.
Depois da passagem do pesado veículo, o grande desafio era o de encontrar as moedas dobradas, que às vezes saltavam para longe e costumavam desaparecer por entre as frinchas dos paralelepípedos.
Um inglês que havia comprado um lugar para sentar no chão da cela resolveu meter o bedelho na conversa.
O preto velho aproveitou para perguntar:
- Porque você foi preso, compadre?
- Alguém colocou alguma porcaria na minha bagagem de mão. Fui preso antes mesmo de subir no avião. Como você sabe, sou inocente.
- Aqui nesta cela não tem ninguém culpado! Arrematou Ernesto Anglicano, farejando proveitosa revelação.
- Na Inglaterra, mais precisamente em Yorkshire, onde se fabricava manteiga, as operárias dos laticínios costumavam manter uma moeda dobrada à mão, para o caso do creme obstinar-se em não virar manteiga. As moedas dobradas eram conhecidas como “talismãs da nata”. Também a literatura elisabetana está repleta de moedas dobradas, oferecidas às senhoras como prova de amor. Eram as famosas “moedas de quatro pences curvadas”.
- Não sei porque, quando eu penso em um tesouro, penso em moedas - lembrou Ernesto Anglicano - não consigo imaginar uma arca de piratas repleta com papel moeda!
- É verdade - lembrou o inglês - as moedas possuem uma espécie de sortilégio... Talvez devido ao metal em que são cunhadas...
- Hoje, aço inoxidável, bronze, latão ou alumínio - disse o negro velho - não valem muito!
- Porém, no passado, eram de ouro, prata ou cobre - acrescentou Ernesto Anglicano.
-As moedas de cobre, de quarenta réis, eram usadas na Bahia para tocar o berimbau - hoje desapareceram... esclareceu o preto velho, sem ser perguntado.
- Na Grécia antiga a alma de quem morria precisava atravessar o rio Estige para conseguir a paz no mundo inferior. Só havia um jeito: utilizar os serviços do barqueiro Caronte. Que cobrava a passagem em dinheiro corrente. Assim eram colocadas moedas na boca e nos olhos dos mortos... - o inglês revelava certa erudição.
-Você conhece bastante sobre moedas! Admirou-se Ernesto Anglicano.
- É que vivi delas por certo tempo - explicou o inglês - assim como ganhei muito dinheiro com o chamado “ouro velho”!
- O ouro envelhece? Perguntou o preto velho.
-Só na cabeça das mulheres - e o inglês riu.
- Como é que você ganhou dinheiro com moedas?
- Moedas tortas, perfuradas, desfiguradas ou com danos de qualquer natureza parecem ter perdido o valor de compra. Eu as trocava e pagava um centavo por qualquer uma delas. Depois as levava a um Banco. Ao recolher as moedas, o Banco fornecia um recibo. Depois de examinadas pelo Banco Central, as moedas danificadas eram destruídas e eu recebia o ressarcimento ... quase sempre pelo valor real das moedas! Algum tempo depois, eu percebi a fascinação que as moedas revelam pelas fontes, poços, cavidades inundadas...
- Por exemplo, a Fontana de Trevi? Ernesto Anglicano tentou adivinhar.
-Exatamente. Por alguma obscura razão as moedas levam os seres humanos a atirá-las nesses locais. São oferendas votivas. A prática pode datar à Idade de Bronze, quando certa deterioração climática fez com que os deuses do céu e da terra fossem substituídos por divindades aquáticas...
-Iemanjá! Exclamou o velho - nas viradas dos anos os baianos atiram quantidades assombrosas de moedas nas águas do mar, oferendas à rainha das águas, Dandalunda...
- Houve época, em Ubatuba, que eu fazia o mesmo - lembrou Ernesto Anglicano - certa passagem de ano, precisando de sorte, atirei nas ondas quantidade absurda de moedas...
-E deu certo? Interessou-se o inglês.
- Não. E no ano seguinte voltei, procurando recuperar algumas das moedas atiradas, em vão...
- Ouça - prosseguiu o inglês, eu estava em Londres quando a a velha Ponte de Londres era desmontada para ser levada para o Arizona. Então descobri que o leito do rio Tamisa, sob a ponte, estava atulhado por moedas imperiais. Consegui apossar-me de uma centena delas e as vendi, lentamente, em leilões de antiguidades. Com o resultado obtido consegui viver confortavelmente durante cinco ou seis anos. Também consegui vinte moedas com a efígie de Antonino Pio, do século dois, ano do Senhor, retiradas do poço celta dedicado à ninfa Coventina...de posse dessas informações e conhecimentos, quando cheguei ao Brasil, instalei alguns poços dos desejos em diversos shoppings centers. Consegui viver da coleta das moedas, até que fui denunciado por funcionários que desejavam o botim para eles. Depois houve aquela inflação galopante. O dinheiro que na véspera podia comprar, por exemplo, uma bicicleta nova, no dia seguinte mal dava para um maço de cigarros... uma moeda de cinqüenta centavos valia menos do que o seu peso em metal...troquei papel moeda por moedas pelo insignificante valor nominal, arranjei maquina que as furava no centro e passei a vender as moedas pelo dobro do valor, como arruelas para oficinas mecânicas ... Finalmente apareceu aquela porcaria na minha mala de mão e aqui estou eu...
-Ernesto Anglicano! - chamou o carcereiro.
Antes de atender ao chamado, Ernesto Anglicano passou um cartão de visitas ao inglês.
-Procure-me, quando sair daqui. Quero saber porque as pessoas dobram as moedas...e como, pois não é fácil dobrá-las!
(Trecho retirado do conto A Associação, in Ciprestes, casuarinas e riachos, de Coutinho, Larry)
Larry Coutinho
Nenhum comentário:
Postar um comentário