domingo, 9 de fevereiro de 2014

Blue Jasmine x A Street Car Named Desire - Crônicas da Cidade Plural.

Novo olhar sobre velhos temas

               
 Woody Allen, Cate Blanchett, Cacilda Beker, Vivian Leigh e Tennessee Williams.                   
 Ou chá, cana-de-açúcar, laranjas, simpatias e Blue Jasmine. 
      
O cafezinho brasileiro pode ser sorvido rapidamente de diversas formas e em todas as ocasiões: em pé e ao lado dos balcões de apinhadas padarias, nos saguões dos aeroportos, nas salas de espera, nos estabelecimentos bancários onde os gerentes procuram manter os  clientes confortáveis e mimados, ou  nas visitas formais a vizinhos e conhecidos.
Ao contrário e sabe-se lá por qual razão o chá sempre está condicionado a certas manias ligadas ao ato de consumi-lo, e também ao consumidor propriamente dito. 
O bebedor de chá, cuja vida é pautada por certa sofisticação, quase sempre dispõe de tempo livre, o que lhe permite considerar com seriedade todo o ritual do necessário.. 
Não estou tratando do complicado ritual chinês, nem das cronometradas sessões inglesa do “five o’clock tea”, mas sim de pequenas manias, como, por exemplo,  manter exata a temperatura da água do chimarrão (que é o chá do gaúcho), ou a de só considerar saborosa a bebida proveniente das  folhas de chá  oriundas de certas regiões do globo terrestre.
Como inveterado bebedor de chá prefiro todas as marcas que ainda são comercializadas pelos ingleses e colhidas na região de Darjeeling, uma pequena cidade situada no noroeste da Índia.
Lá, o período das chuvas vai de Junho a Outubro.
Toda a região está colocada entre mil e oitocentos a dois mil e quatrocentos metros acima do nível do mar, e da pequena janela do quarto que a amiga Carol coloca sempre à minha disposição quando estou na Índia consigo enxergar o Everest e o Kanchenjunga, duas das mais altas montanhas do mundo.
Costumo visitar Darjeeling para beber o chá na sua origem.
A casa de Carol fica um pouco distante da cidade, e o caminho, uma espécie de picada pedregosa, atravessa plantações de chá, permite-me avistar os arrozais, no fundo do vale, e contorce-se entre as árvores de cinchona, por onde é muito agradável caminhar. 
Na temporada seca - novembro a maio - a cidade fica repleta de turistas que lotam excursões  pelas encostas  na região montanhosa, e quase sempre visitam o jardim botânico local.
 Também visitam a cidade os indianos enfermos a procura dos sanatórios afamados.
O chá como produto sempre teve  elevada  importância, para os ingleses e também para certos norte-americanos cujos ancestrais eram  ingleses continentais, repudiados pela política religiosa da ilha britânica .
Lembro-me do papel desempenhado pelo imposto sobre o chá no movimento da independência norte-americana e recordo com certa emoção das narrativas sobre as viagens do Cutty Sark, um Clipper, veleiro de sofisticada construção, recordista de velocidade  em viagens para a Índia e para a China, das quais voltava abarrotado de chá, no tempo exato capaz de conservá-lo para o consumo saboroso: cem dias. 
Pois bem, todo esse envolvimento britânico talvez consiga explicar o nascimento em Darjeeling, em 5 de novembro de 1913,  de certa menina britânica, mais tarde educada em conventos da Inglaterra e do continente europeu,  que tomou o nome civil de Vivian Mary Hartley.
Aos vinte anos, provou sua aptidão para o cinema  atuando em Look Up and Laugh (Cuidado e ria), filme inglês  lançado em 1934.
Contracenou com sir Laurence Olivier em Fire Over England (Fogo sobre a Inglaterra), em 1937 e, sendo ambos, Vivian e Laurence casados com pessoas diferentes, divorciaram-se e casaram entre si  em 1940.
A jovem nascida por entre os arbustos de chá de Darjeeling, cujo codinome artístico era Vivien Leigh, conseguiu alcançar popularidade mundial ao interpretar o papel de mulher corajosa, latifundiária do sul dos Estados Unidos, nos difíceis tempos da Guerra de Secessão: Scarlett O’Hara, em E o Vento Levou, uma produção de Hollywood. 


Por outro lado, foi um prazer percorrer as rodovias paulistas, entre canaviais e laranjais, em busca da operosa cidade de Pirassununga.
A primeira coisa a chamar minha atenção, enquanto esperava para ser atendido por Israel Foguel,  diretor do Teatro Municipal Cacilda Becker foi uma cópia xerográfica da certidão de nascimento de Cacilda Becker Yáconis que aquele intelectual mantém emoldurada, sendo o único quadro a enfeitar as paredes do  aposento.
O segundo acontecimento foi a sensação de vergonha  ao perceber que, após vinte ou trinta leituras minuciosas e anotadas no material que consegui arrolar sobre a atriz, eu nada sabia sobre ela.
O simpático diretor discorreu três ou quatro minutos, e eu já estava perdido num mundo novo, inédito para mim e acredito,  para milhões de brasileiros.
De repente, surgiu uma nova Cacilda, mais uma delas!
Pirassununga não possui altas montanhas em território municipal, certamente nada que se compare ao Everest. 
Ao contrário, as terras baixas abrigam extensos canaviais e laranjais que se perdem no horizonte e são levemente onduladas, semelhantes a um planalto com vocação para alto-mar em dia de calmaria, como se algum telespectador houvesse premido a tecla “pause” de seu equipamento eletrônico, congelando para sempre os imensos vagalhões verde-claros sob o céu azul profundo.
Aliás, céu de brigadeiro, por onde esvoaçam os aviões da “esquadrilha-da-fumaça”, em treinamento das audaciosas manobras cuja fama já ultrapassou as fronteiras nacionais.
Mas ali estava eu, em pleno dia 6 de abril de 1999,  contemplando a certidão de nascimento da atriz e um pouco espantado pela coincidência.
Se viva, naquele dia mesmo Cacilda estaria completando setenta e oito anos!
Em 6 de abril de 1921, na rua Mario Tavares, número 44 - essa rua não consta do mapa moderno da cidade de Pirassununga - exatamente às nove horas e vinte e cinco minutos da manhã, dona Margarida Risé, parteira, comentou com dona Alzira Leonor Becker:- “É menina!”
Depois cobrou trinta mil réis pelos serviços e foi embora.

No entanto, a azáfama que vinha do salão do palco lembrou-me de que eu estava sendo indelicado.
Afinal, o diretor do teatro ultimava os preparativos para a apresentação, logo mais à noite, da  peça A Falecida, em continuidade à semana  de comemorações do evento 1969-1999, Trinta anos sem Cacilda com que Pirassununga homenageava a artista.
Despedi-me e corri à Biblioteca Municipal onde encontrei um volume da História do Nosso Teatro, do mesmo diretor Israel Foguel, e passei o resto do dia lendo e relendo as páginas que começavam a revelar, para mim, um universo inédito de fracassos e triunfos,  desamores e amores, pobrezas e talentos fascinantes.
No fim do dia despedi-me de Pirassununga e voltei a percorrer as estradas por entre laranjas e  grandes espaços plantados de cana de açúcar, dourados pela luz do sol poente.


Porém o que ou quem uniria a menina nascida e crescida nos caminhos  das plantações  de chá à outra menina crescida entre laranjais e cana-de-açúcar?
Pergunto e imediatamente respondo: Tennessee Williams
O autor de A Streetcar  Named Desire, novela que no filme de Vivien Leigh tomou o nome de  Uma rua chamada pecado.

Uma Rua Chamada Pecado (A Streetcar Named Desire), filme dirigido por Elia Kazan. Intérpretes: Vivien Leigh, Marlon Brando, Kim Hunter, Karl Maden

Tennessee Williams era certamente autor conhecido das nossas platéias dos velhos tempos: O Anjo de PedraGata em Teto de Zinco Quente foram  as últimas das suas quatro grandes peças a serem representadas em São Paulo, que já vira  À Margem da Vida e Uma Rua Chamada Pecado.

À Margem da Vida foi levada a cena no TBC no final de 1948, pelo grupo Sociedade de Amadores Ingleses.
 Anjo de Pedra (Summer  and  Smoke) : a cenografia exigia a estátua de um anjo de pedra, numa postura graciosa e asas erquidas. Dai saiu o título da peça Anjo de Pedra.

 Cacilda Becker foi escolhida para interpretar Alma Winemiller em Anjo de Pedra. Uma mulher que se aproximava da concepção de Blanche Dubois em Uma Rua Chamada Pecado, em cuja interpretação Vivien Leigh, no cinema,  daria o melhor de si.
E recordo  das estupendas atuações das duas atrizes, Vivien Leigh no papel de Blanche Dubois, em A Streetcar Named Desire e Cacilda Becker não só como Maggie, em Gata em Teto de Zinco Quente, mas também  criando a conturbada Alma Winemiller,  em  Anjo de Pedra.
Tarefas difíceis, nas quais era preciso superatuar.
Isto é, forçar a patologia das personagens até além do limite do razoável.
É além desse limite que se situam as singularidades de Blanche Dubois,  Alma Winemiller  e Maggie.
A respeito da interpretação de Maggie, Regina Helena comentou em sua coluna da A Gazeta: “Há muito tempo não viamos Cacilda Becker e Ziembinski tão bem (...) Cacilda foi a mulher quase anormal, ferina, agitada, nervos à flor da pele que Tennessee Williams imaginou(...)”
De que maneira Regina Helena conseguiu descobrir o que Tennessee Willians havia imaginado?
Não sei dizer.
Porém posso  afirmar que Tennesse Willians era obcecado por certa figura feminina, que era sempre a mesma sob disfarces diferentes: Laura, Blanche Dubois, Alma Winemiller, Serafina, Maggie, Alexandra del Lago, Amanda Wingfield...

As interpretações de Vivian Leigh são de fácil acompanhamento, pois a filmografia da estrela não é longa, apenas vinte filmes, dos quais dezesseis deles são encontrados em vídeo, englobando, além de E O Vento Levou (Gone With The Wind),  preciosidades como A Ponte de Waterloo   (Waterloo Bridge), Lady Hamilton, A Divina Dama (That Hamilton Woman)Ana Karenina (Anna Karenina), na filmagem de 1948. (A primeira versão falada desse filme data de 1935, e nela Greta Garbo desempenhou o papel-título.)
Mas o crème de la crème é sem duvida  Uma Rua Chamada Pecado (A Streetcar  Named Desire), e sugiro a qualquer pessoa que se interesse pelo cinema e pelo teatro a agradável tarefa de assistir a atuação de Vivien Leigh interpretando Blanche Dubois.
No início Blanche Dubois parece falsa, exagerada nas atitudes, inconseqüente, num estilo de atuar até mesmo fora-de-moda.
Aos poucos aquela personalidade se vai firmando como autêntica e aparece a mansa loucura de quem busca recriar um mundo perdido ...ou inexistente .. ou verdadeiro e sufocante? enfim, alugue o filme e assista.
 Já Cacilda Becker mostrou seu trabalho no teatro, um pouco na televisão; em cinema só deixou dois filmes, Luz dos Meus Olhos  e  Floradas na Serra.
Tanto Cacilda Becker como Vivian Leigh foram  mulheres aparentemente frágeis, mas ambas desenvolveram suas carreiras ao longo de trinta anos de profissão e morreram relativamente jovens.
Porém com Woody Allen e Cate Blanchett conseguiram lugar em nossa modesta crônica?  Bem ao lado de Vivian Leigh, Cacilda Becker e Tennesse Williams?
Certamente foi neste caloroso domingo de 9 de fevereiro de 2014.
A tarde já ia morrendo quando coloquei um DVD, displicentemente, sem ao menos verificar o título.
Com um olho no gato e outro no canário eu conversava com minha mulher e dedicava um pouco de atenção à ação que começava na telinha.
Subitamente, a telinha capturou todo o meu espanto.
Aquela loira que descia do avião e infernizava sua eventual companheira de viagem com relatos surpreendentes da sua vida sexual, era uma velha conhecida!
Trinta segundos depois a identidade se revelou em minha mente: Blanche Dubois! Jasmine, na releitura de Woody Allen da famosa peça de Tennesse Williams.
E Blue Jasmine é um filme que mostra exatamente essa releitura.
Porém o filme fala por si mesmo e o espectador não precisa ser tão velho como eu, que segui a obra comparando mentalmente com as cenas originais da obra cinematográfica de Elia Kazan (Uma Rua Chamada Pecado  - A Streetcar Named Desire -, filme dirigido por Elia Kazan. Intérpretes: Vivien Leigh, Marlon Brando, Kim Hunter, Karl Maden).
Após apreciar  Blue Jasmim, o espectador mais insone poderá conseguir, na Internet, a versão de Elia Kazan, deliciar-se com as interpretações de Marlon Brando e principalmente de Vivian Leight.
Perceberá então que toda a estrutura dramática das obras, tanto da versão original de Tennesse Williams como da releitura de Woody Allen conservaram a controversa personalidade de Blanche/Jasmine como a grande atração do drama.
É certo que o estudo completo demandará muitas horas e certamente levará às outras obras conhecidas de Tennesse Williams no Brasil e à Cacilda Becker, talvez a maior atriz brasileira envolvida nas angustiadas personagens femininas criadas pelo autor.

 Para saber muito mais:
Fernandes, Nanci e Vargas, Maria Thereza - Uma Atriz: Cacilda Becker Ed. Perspectiva, 1983.
Guzik, Alberto - TBC: Cronica de um sonho - Ed. Perspectiva 1986.
Coutinho, Larry – Cacilda, outras criaturas e criações- Original em fase final de redação. 2013.
Blue Jasmine, filme. Alec Baldwin, Cate Blanchett, Louis C.K. Bobby  CAnnavale, Andrew Dice Clay, Sally Hawkins, Peter Sarsgaard. Michel Stulbarg. Direção e roteiro de Woody Allen

NOTAS:

Tennesse Willians   (1911-1983) foi mais interferente na cultura brasileira do que pode parecer à primeira vista.
Nas décadas de 40, 50 e 60 apareceram,  na cidade de São Paulo, filmes, peças e livros  provindos da brilhante pena do dramaturgo.
Temas algumas vezes polêmicos e de profundo interesse para a classe média temerosa.
Os personagens femininos eram marcantes.
Aliando a construção literária ao talento de atrizes predestinadas, resultaram em prêmios de muita importância atribuidos às performaces.
Pela ordem cronológica:
1944 - The Glass Menagerie - Recebeu, em português as denominações: Algemas de Cristal, e À Margem da Vida. Foram rodados três filmes diferentes, em 1950, 1973 e 1987. À Margem da Vida foi  levada a cena no TBC no final de 1948, pelo grupo Sociedade de Amadores Ingleses, antecedendo  em quase dois anos a apresentação do filme.
1947 - A Streetcar Named Desire - em português: Um Bonde Chamado Desejo; ou Uma Rua Chamada Pecado. Vivien Leigh, Marlon Brando, Kim Hunter, Carl Maden. Todos receberam o Oscar, menos Marlon Brando. Filme de 1951 e foram montadas inumeras peças teatrais.
1948 - Summer and Smoke - em português Anjo de Pedra. Filme de 1961, com Geraldine Page. A apresentação no Teatro Brasileiro de Comédia  antecedeu ao filme, pois a peça estreou em São Paulo em 16 de agosto de 1950. Cacilda Beker como Alma Winemiller.
1955 - The Rose Tattoo - em português A Rosa Tatuada. Filme de 1955. Intérprete: Ana Magnani (Oscar pelo papel).
1955 - Cat on a Hot Tin Roof - em português Gata em Teto de Zinco Quente. Filme de 1958. Elizabeth Taylor (Oscar).  A versão teatral estreou em São Paulo, no TBC, em 18 de outubro de 1956. Cacilda Beker no papel de Maggie Pollit ( a gata). Ainda aqui a peça teatral apresentada em São Paulo antecedeu ao filme.
1956 - Baby Doll - Tennesssee Willians escreveu apenas o argumento. Filme com a protagonista Carol Baker, que ficou marcada no papel. Escândalo razoável para a época. Baby Doll era uma camisolinha curta e diáfana, escandalosa por si mesma.
1958 - Suddenly, Last Summer - em português De Repente no Último Verão . Filme de 1959 - Katharine Hepburn.
1959 - Sweet Bird of Youth - em português  Doce Pássaro da Juventude.  Filme de 1962, com Paul Newman.
1961 - The Night of the Iguana - em português A noite do Iguana . Filme de 1964, com Ava Gardner. Em São Paulo, no TCB - Teatro Cacilda Beker, estreou em 5 de março de 1964. Cacilda Beker no papel de Ana Jelkes, e Olga Navarro como Maxine. (TCB - Teatro Cacilda Beker. Cacilda, Walmor Chagas e Ziembinski, que saíram do TBC e montaram a sociedade)

Larry Coutinho