Novo
olhar sobre velhos temas
Woody Allen, Cate Blanchett, Cacilda Beker,
Vivian Leigh e Tennessee Williams.
Ou chá,
cana-de-açúcar, laranjas, simpatias e Blue Jasmine.
O cafezinho brasileiro pode ser sorvido rapidamente de diversas formas
e em todas as ocasiões: em pé e ao lado dos balcões de apinhadas padarias, nos
saguões dos aeroportos, nas salas de espera, nos estabelecimentos bancários
onde os gerentes procuram manter os
clientes confortáveis e mimados, ou
nas visitas formais a vizinhos e conhecidos.
Ao contrário e sabe-se lá por qual razão o chá sempre está
condicionado a certas manias ligadas ao ato de consumi-lo, e também ao
consumidor propriamente dito.
O bebedor de chá, cuja vida é pautada por certa sofisticação, quase
sempre dispõe de tempo livre, o que lhe permite considerar com seriedade todo o
ritual do necessário..
Não estou tratando do complicado ritual chinês, nem das cronometradas
sessões inglesa do “five o’clock tea”, mas sim de pequenas manias, como, por
exemplo, manter exata a temperatura da
água do chimarrão (que é o chá do gaúcho), ou a de só considerar saborosa a
bebida proveniente das folhas de chá oriundas de certas regiões do globo
terrestre.
Como inveterado bebedor de chá prefiro todas as marcas que ainda são
comercializadas pelos ingleses e colhidas na região de Darjeeling, uma pequena
cidade situada no noroeste da Índia.
Lá, o período das chuvas vai de Junho a Outubro.
Toda a região está colocada entre mil e oitocentos a dois mil e
quatrocentos metros acima do nível do mar, e da pequena janela do quarto que a amiga
Carol coloca sempre à minha disposição quando estou na Índia consigo enxergar o
Everest e o Kanchenjunga, duas das mais altas montanhas do mundo.
Costumo visitar Darjeeling para beber o chá na sua origem.
A casa de Carol fica um pouco distante da cidade, e o caminho, uma
espécie de picada pedregosa, atravessa plantações de chá, permite-me avistar os
arrozais, no fundo do vale, e contorce-se entre as árvores de cinchona, por onde
é muito agradável caminhar.
Na temporada seca - novembro a maio - a cidade fica repleta de
turistas que lotam excursões pelas
encostas na região montanhosa, e quase
sempre visitam o jardim botânico local.
Também visitam a cidade os
indianos enfermos a procura dos sanatórios afamados.
O chá como produto sempre teve
elevada importância, para os
ingleses e também para certos norte-americanos cujos ancestrais eram ingleses continentais, repudiados pela
política religiosa da ilha britânica .
Lembro-me do papel desempenhado pelo imposto sobre o chá no movimento
da independência norte-americana e recordo com certa emoção das narrativas
sobre as viagens do Cutty Sark, um Clipper, veleiro de sofisticada construção,
recordista de velocidade em viagens para
a Índia e para a China, das quais voltava abarrotado de chá, no tempo exato
capaz de conservá-lo para o consumo saboroso: cem dias.
Pois bem, todo esse envolvimento britânico talvez consiga explicar o
nascimento em Darjeeling, em 5 de novembro de 1913, de certa menina britânica, mais tarde educada
em conventos da Inglaterra e do continente europeu, que tomou o nome civil de Vivian Mary
Hartley.
Aos vinte anos, provou sua aptidão para o cinema atuando em Look Up and Laugh (Cuidado
e ria), filme inglês lançado em
1934.
Contracenou com sir Laurence Olivier em Fire Over England (Fogo
sobre a Inglaterra), em 1937 e, sendo ambos, Vivian e Laurence casados com
pessoas diferentes, divorciaram-se e casaram entre si em 1940.
A jovem nascida por entre os arbustos de chá de Darjeeling, cujo
codinome artístico era Vivien Leigh, conseguiu alcançar popularidade mundial ao
interpretar o papel de mulher corajosa, latifundiária do sul dos Estados
Unidos, nos difíceis tempos da Guerra de Secessão: Scarlett O’Hara, em E o
Vento Levou, uma produção de Hollywood.
Por outro lado, foi um prazer percorrer as rodovias paulistas, entre
canaviais e laranjais, em busca da operosa cidade de Pirassununga.
A primeira coisa a chamar minha atenção, enquanto esperava para ser
atendido por Israel Foguel, diretor do Teatro
Municipal Cacilda Becker foi uma cópia xerográfica da certidão de
nascimento de Cacilda Becker Yáconis que aquele intelectual mantém emoldurada,
sendo o único quadro a enfeitar as paredes do
aposento.
O segundo acontecimento foi a sensação de vergonha ao perceber que, após vinte ou trinta
leituras minuciosas e anotadas no material que consegui arrolar sobre a atriz,
eu nada sabia sobre ela.
O simpático diretor discorreu três ou quatro minutos, e eu já estava
perdido num mundo novo, inédito para mim e acredito, para milhões de brasileiros.
De repente, surgiu uma nova Cacilda, mais uma delas!
Pirassununga não possui altas montanhas em território municipal,
certamente nada que se compare ao Everest.
Ao contrário, as terras baixas abrigam extensos canaviais e laranjais
que se perdem no horizonte e são levemente onduladas, semelhantes a um planalto
com vocação para alto-mar em dia de calmaria, como se algum telespectador
houvesse premido a tecla “pause” de seu equipamento eletrônico, congelando para
sempre os imensos vagalhões verde-claros sob o céu azul profundo.
Aliás, céu de brigadeiro, por onde esvoaçam os aviões da
“esquadrilha-da-fumaça”, em treinamento das audaciosas manobras cuja fama já
ultrapassou as fronteiras nacionais.
Mas ali estava eu, em pleno dia 6 de abril de 1999, contemplando a certidão de nascimento da
atriz e um pouco espantado pela coincidência.
Se viva, naquele dia mesmo Cacilda estaria completando setenta e oito
anos!
Em 6 de abril de 1921, na rua Mario Tavares, número 44 - essa rua não
consta do mapa moderno da cidade de Pirassununga - exatamente às nove horas e
vinte e cinco minutos da manhã, dona Margarida Risé, parteira, comentou com
dona Alzira Leonor Becker:- “É menina!”
Depois cobrou trinta mil réis pelos serviços e foi embora.
No entanto, a azáfama que vinha do salão do palco lembrou-me de que
eu estava sendo indelicado.
Afinal, o diretor do teatro ultimava os preparativos para a
apresentação, logo mais à noite, da peça
A Falecida, em continuidade à semana
de comemorações do evento 1969-1999, Trinta anos sem Cacilda com
que Pirassununga homenageava a artista.
Despedi-me e corri à Biblioteca Municipal onde encontrei um volume da
História do Nosso Teatro, do mesmo diretor Israel Foguel, e passei o
resto do dia lendo e relendo as páginas que começavam a revelar, para mim, um
universo inédito de fracassos e triunfos,
desamores e amores, pobrezas e talentos fascinantes.
No fim do dia despedi-me de Pirassununga e voltei a percorrer as
estradas por entre laranjas e grandes
espaços plantados de cana de açúcar, dourados pela luz do sol poente.
Porém o que ou quem uniria a menina nascida e crescida nos
caminhos das plantações de chá à outra menina crescida entre
laranjais e cana-de-açúcar?
Pergunto e imediatamente respondo: Tennessee Williams
O autor de A Streetcar
Named Desire, novela que no filme de Vivien Leigh tomou o nome
de Uma rua chamada pecado.
Uma Rua Chamada Pecado (A Streetcar Named Desire), filme dirigido por Elia Kazan.
Intérpretes: Vivien Leigh, Marlon Brando, Kim Hunter, Karl Maden
Tennessee Williams era certamente autor conhecido das nossas platéias
dos velhos tempos: O Anjo de Pedra e
Gata em Teto de Zinco Quente foram as últimas das suas quatro grandes peças a
serem representadas em São Paulo, que já vira
À Margem da Vida e Uma Rua Chamada Pecado.
À Margem da Vida foi levada a cena no TBC no final de 1948, pelo grupo Sociedade de
Amadores Ingleses.
Anjo de Pedra (Summer and
Smoke) : a cenografia exigia a estátua de um anjo de pedra, numa
postura graciosa e asas erquidas. Dai saiu o título da peça Anjo de Pedra.
Cacilda Becker foi escolhida para
interpretar Alma Winemiller em Anjo de Pedra. Uma mulher que se
aproximava da concepção de Blanche Dubois em Uma Rua Chamada Pecado, em
cuja interpretação Vivien Leigh, no cinema,
daria o melhor de si.
E recordo das estupendas
atuações das duas atrizes, Vivien Leigh no papel de Blanche Dubois, em A Streetcar
Named Desire e Cacilda Becker não só como Maggie, em Gata em Teto de
Zinco Quente, mas também criando a
conturbada Alma Winemiller, em Anjo de Pedra.
Tarefas difíceis, nas quais era preciso superatuar.
Isto é, forçar a patologia das personagens até além do limite do
razoável.
É além desse limite que se situam as singularidades de Blanche
Dubois, Alma Winemiller e Maggie.
A respeito da interpretação de Maggie, Regina Helena comentou em sua
coluna da A Gazeta: “Há muito tempo não viamos Cacilda Becker e Ziembinski tão
bem (...) Cacilda foi a mulher quase anormal, ferina, agitada, nervos à flor da
pele que Tennessee Williams imaginou(...)”
De que maneira Regina Helena conseguiu descobrir o que Tennessee
Willians havia imaginado?
Não sei dizer.
Porém posso afirmar que
Tennesse Willians era obcecado por certa figura feminina, que era sempre a
mesma sob disfarces diferentes: Laura, Blanche Dubois, Alma Winemiller,
Serafina, Maggie, Alexandra del Lago, Amanda Wingfield...
As interpretações de Vivian Leigh são de fácil acompanhamento, pois a
filmografia da estrela não é longa, apenas vinte filmes, dos quais dezesseis
deles são encontrados em vídeo, englobando, além de E O Vento Levou (Gone
With The Wind), preciosidades como A
Ponte de Waterloo (Waterloo Bridge),
Lady Hamilton, A Divina Dama (That Hamilton Woman), Ana Karenina (Anna Karenina), na
filmagem de 1948. (A primeira versão falada desse filme data de 1935, e nela
Greta Garbo desempenhou o papel-título.)
Mas o crème de la crème é sem duvida Uma Rua Chamada Pecado (A Streetcar Named Desire), e sugiro a qualquer pessoa
que se interesse pelo cinema e pelo teatro a agradável tarefa de assistir a
atuação de Vivien Leigh interpretando Blanche Dubois.
No início Blanche Dubois parece falsa, exagerada nas atitudes, inconseqüente,
num estilo de atuar até mesmo fora-de-moda.
Aos poucos aquela personalidade se vai firmando como autêntica e
aparece a mansa loucura de quem busca recriar um mundo perdido ...ou
inexistente .. ou verdadeiro e sufocante? enfim, alugue o filme e assista.
Já Cacilda Becker mostrou seu
trabalho no teatro, um pouco na televisão; em cinema só deixou dois filmes, Luz
dos Meus Olhos e Floradas na Serra.
Tanto Cacilda Becker como Vivian Leigh foram mulheres aparentemente frágeis, mas ambas
desenvolveram suas carreiras ao longo de trinta anos de profissão e morreram
relativamente jovens.
Porém com Woody Allen e Cate Blanchett conseguiram lugar em nossa
modesta crônica? Bem ao lado de Vivian
Leigh, Cacilda Becker e Tennesse Williams?
Certamente foi neste caloroso domingo de 9 de fevereiro de 2014.
A tarde já ia morrendo quando coloquei um DVD, displicentemente, sem
ao menos verificar o título.
Com um olho no gato e outro no canário eu conversava com minha mulher
e dedicava um pouco de atenção à ação que começava na telinha.
Subitamente, a telinha capturou todo o meu espanto.
Aquela loira que descia do avião e infernizava sua eventual
companheira de viagem com relatos surpreendentes da sua vida sexual, era uma
velha conhecida!
Trinta segundos depois a identidade se revelou em minha mente:
Blanche Dubois! Jasmine, na releitura de Woody Allen da famosa peça de Tennesse
Williams.
E Blue Jasmine é um filme que mostra exatamente essa releitura.
Porém o filme fala por si mesmo e o espectador não precisa ser tão
velho como eu, que segui a obra comparando mentalmente com as cenas originais
da obra cinematográfica de Elia Kazan (Uma Rua Chamada Pecado - A Streetcar Named Desire -, filme
dirigido por Elia Kazan. Intérpretes: Vivien Leigh, Marlon Brando, Kim Hunter, Karl Maden).
Após apreciar Blue Jasmim, o
espectador mais insone poderá conseguir, na Internet, a versão de Elia Kazan,
deliciar-se com as interpretações de Marlon Brando e principalmente de Vivian
Leight.
Perceberá então que toda a estrutura dramática das obras, tanto da
versão original de Tennesse Williams como da releitura de Woody Allen
conservaram a controversa personalidade de Blanche/Jasmine como a grande
atração do drama.
É certo que o estudo completo demandará muitas horas e certamente
levará às outras obras conhecidas de Tennesse Williams no Brasil e à Cacilda
Becker, talvez a maior atriz brasileira envolvida nas angustiadas personagens
femininas criadas pelo autor.
Para saber muito mais:
Fernandes, Nanci e Vargas, Maria Thereza - Uma Atriz: Cacilda Becker Ed. Perspectiva, 1983.
Guzik, Alberto - TBC:
Cronica de um sonho - Ed. Perspectiva 1986.
Coutinho, Larry – Cacilda, outras criaturas e criações- Original em fase final de
redação. 2013.
Blue Jasmine, filme. Alec
Baldwin, Cate Blanchett, Louis C.K. Bobby
CAnnavale, Andrew Dice Clay, Sally Hawkins, Peter Sarsgaard. Michel
Stulbarg. Direção e roteiro de Woody Allen
NOTAS:
Tennesse Willians (1911-1983) foi
mais interferente na cultura brasileira do que pode parecer à primeira
vista.
Nas décadas de 40, 50 e 60 apareceram, na cidade de São Paulo, filmes, peças e
livros provindos da brilhante pena do
dramaturgo.
Temas algumas vezes polêmicos e de profundo interesse para a classe
média temerosa.
Os personagens femininos eram marcantes.
Aliando a construção literária ao talento de atrizes predestinadas,
resultaram em prêmios de muita importância atribuidos às performaces.
Pela ordem cronológica:
1944 - The Glass Menagerie - Recebeu, em português as denominações: Algemas de Cristal, e
À Margem da Vida. Foram rodados três filmes diferentes, em 1950, 1973 e
1987. À Margem da Vida foi levada a cena no TBC no final de 1948, pelo
grupo Sociedade de Amadores Ingleses, antecedendo em quase dois anos a apresentação do filme.
1947 - A Streetcar Named Desire - em português:
Um Bonde Chamado Desejo; ou Uma Rua Chamada Pecado.
Vivien Leigh, Marlon Brando, Kim Hunter, Carl Maden. Todos receberam
o Oscar, menos Marlon Brando. Filme de 1951 e foram montadas inumeras
peças teatrais.
1948 - Summer and
Smoke - em português Anjo de Pedra. Filme de 1961, com Geraldine
Page. A apresentação no Teatro Brasileiro de Comédia antecedeu ao filme, pois a peça estreou em
São Paulo em 16 de agosto de 1950. Cacilda Beker como Alma Winemiller.
1955 - The Rose Tattoo - em português A Rosa Tatuada. Filme de 1955. Intérprete: Ana
Magnani (Oscar pelo papel).
1955 - Cat on a
Hot Tin Roof - em português Gata em Teto de Zinco Quente. Filme de
1958. Elizabeth Taylor (Oscar). A versão
teatral estreou em São Paulo, no TBC, em 18 de outubro de 1956. Cacilda Beker
no papel de Maggie Pollit ( a gata). Ainda aqui a peça teatral apresentada em
São Paulo antecedeu ao filme.
1956 - Baby Doll - Tennesssee Willians escreveu apenas o argumento. Filme com a
protagonista Carol Baker, que ficou marcada no papel. Escândalo razoável para a
época. Baby Doll era uma camisolinha curta e diáfana, escandalosa por si mesma.
1958 - Suddenly, Last Summer - em português De Repente no Último Verão . Filme de 1959 -
Katharine Hepburn.
1959 - Sweet Bird
of Youth - em português Doce
Pássaro da Juventude. Filme de 1962,
com Paul Newman.
1961 - The Night
of the Iguana - em português A noite do Iguana . Filme de 1964, com
Ava Gardner. Em São Paulo, no TCB - Teatro Cacilda Beker, estreou em 5 de março
de 1964. Cacilda Beker no papel de Ana Jelkes, e Olga Navarro como Maxine. (TCB
- Teatro Cacilda Beker. Cacilda, Walmor Chagas e Ziembinski, que saíram do TBC
e montaram a sociedade)
Larry Coutinho