quarta-feira, 29 de junho de 2011

Orixás no Largo da Banana - Crônicas da Cidade Plural

Sozinho em São Paulo na chuvosa noite de janeiro eu janto no Posílipo, cantina que não existe mais.
Que pena!
Depois pego o automóvel estacionado ali perto e desço em direção ao Largo da Banana.
Vou atrás de samba, capoeira ou feitiçaria...
Já não é mais um lugar onde estacionavam as carroças, e depois delas, ponto de encontro dos capoeiristas, dos sambistas, dos seresteiros...
Também ainda não é o lugar onde será construído o Memorial da América Latina.
É o Largo da Banana vigente nos primeiros anos da década de sessenta.

A Barra Funda, o Bexiga e a Baixada do Glicério são três dos principais redutos de ex-escravos vindos do interior do estado - ah! a rua Sinimbu! Entrou em minha vida sem pedir licença. Depois eu conto.
Com os escravos recém-libertos, no início do século vinte, chegou o samba rural, as serestas, uma espécie de jogo de capoeira que chamam de tiririca, a umbanda e o candomblé.
Na Barra Funda existiam os casarões da antiga classe média dos fazendeiros de café, que a crise de vinte e nove transformou em cortiços.
Local de venda dos cachos de banana trazidos do litoral pelas gaiolas dos trens a praça tomou naturalmente o nome de Largo da Banana.
Nas noites garoentas de outrora, quando as carroças distribuidoras do produto deixavam a região, era chegada a hora dos sambas, das serestas, da capoeira, da umbanda, do candomblé.


Endereço no bolso eu sigo em busca de um terreiro.
Se correr estarei lá a tempo de assistir ao candomblé, numa sala que fica em edifício de escritórios.
Chego bem na hora.
Subo correndo a empinada escada que leva ao primeiro andar.
Logo depois da minha entrada um rapaz com um giz escolar na mão traça um ponto escrito no cimento, em frente à porta.
Intrincado desenho! É um poderoso ponto escrito.
Ninguém entra ou sai antes do fim dos trabalhos.
O terreiro está fechado para o culto.
Homens de um lado e mulheres do outro, todos em pé.
Escrivaninhas, cadeiras, arquivos, máquinas de escrever, tudo amontoado no fundo.
De dia, a sala serve de escritório, de noite, é terreiro!
Cruzo os braços e imediatamente diversas vozes protestam:
- Está quebrando a corrente!
Desafiador, verifico a massa indignada.
Sou minoria étnica, por isso abaixo os braços, deixando-os paralelos e rentes ao corpo.
Começa a corimba.
Os atabaques rufam.
Uma voz grossa, de homem, vinda de algum lugar:
- Quem é de boa noite, boa noite. Quem é de abença, abença!
O povo responde em uníssono.
O agogô se junta aos atabaques.
E todos cantam o Exu da Porteira:

“Portão de ferro tá virando de madeira,
Portão de ferro tá virando de madeira.
Exu, toma conta,
Exu, fecha a porta da porteira...”

Já sei que é uma sessão destinada a Exu e sua corte.
Desce a Pomba Gira e os tambores modificam o andamento.
Todos cantam a Pomba Gira:

“Pomba Gira, gira, gira,
Saravá, todo o povo na encruza.
Pomba Gira, gira, gira
Saravá, todo o povo na encruza.

Pomba Gira, ô, ô, ô,
Pomba Gira, e, e, e,
Ela é rainha
Da encruza de Te.

Ela é bonita
Bonita e caridosa...”

A Pomba Gira desce, me tira para dançar e depois implica comigo:
-Ocê num sabe dançá!
Vozerio indignado, até uma voz gritar:
- Sete encruzilhada!
Nova cantoria.
O ambienta esquenta.
Uma entidade fumando cachimbo dá consultas.
Pergunto sobre a Manuela, uma loirinha gostosa que trabalha comigo, e ela responde:
-Se o fio tá perguntano, é pruquê já sabe que ela num presta, né?
E segue adiante, atendendo à próxima consulta.

Finalmente o rapaz vestido de branco apaga o ponto escrito destrancando o terreiro.
Garoa, quando saio.
Procuro algum vestígio de atividade no Largo da Banana.
Quem sabe uma roda de samba, uma turma da tiririca , um solitário seresteiro?
Nada, ninguém...
A garoa se transforma em chuva miúda e eu caminho apressado, a procura do automóvel.
Larry Coutinho

sábado, 11 de junho de 2011

Por onde anda a fé dos paulistas? - Crônicas da Cidade Plural.




No estado de São Paulo, final do século passado, comecei a fotografar capelinhas de beira de estrada, percorrendo estradas vicinais, caminhos nas periferias das cidades do interior, picadas que morrem em porteiras sempre fechadas de grandes fazendas...
Minhas viagens tornaram-se raras, porém ainda continuo com a mania.
Essas capelinhas são pequenas.
Um ou dois metros quadrados, se tanto.
São utilizados pelas populações locais para a guarda de imagens quebradas de Santos, rosários que pertenceram a parentes já falecidos, crucifixos das mais variadas formas e tamanhos, cruzes provenientes de antigas capelas demolidas ou quebradas em túmulos, imagens impressas de Santos...
Enfim, muita coisa de grande valor devocional pode aparecer nos inventários, se forem minuciosos.
Geralmente fotografo a capelinha como aparece na paisagem, e depois o interior, procurando abranger todo o pio estoque que foi nela depositado.
Às vezes, algumas surpresas...
Em Pirassununga encontrei numa destas capelinhas convivendo harmonicamente com imagens de Nossa Senhora da Aparecida, de Santa Bárbara, de São Sebastião, e crucifixos de diversas formas, a massuda imagem da Escrava Anastácia quase sepultada por uma quantidade enorme de terços e de tocos de velas.
Aquele achado me conduziu naturalmente à ligeira pesquisa sobre a vida e a obra daquela pobre Anastácia, condenada a morrer de fome pela senhora da fazenda por haver roubado um doce.
Aplicada a mordaça de ferro e fechadas as algemas, a linda escrava de olhos azuis finalmente morreu.
E ficou a duvida natural.
Condenada pelo roubo do chocolate, ou talvez pelos ternos olhares que o senhor das terras lançava em direção à escrava?
Sem conseguir estabelecer se a história é real ou mítica, ficou o desejo, ainda não realizado, de aprofundar-me na busca da verdade.
Quem sabe não estará ali mais uma Santa brasileira?
Uma vez que as pessoas que rezavam por Anastácia, passaram a rezar para Anastácia.
E segundo a lenda ela promoveu curas milagrosas.
Ultimamente tenho encontrado capelinhas protegidas por grades de aço.
Os fiéis depositam as imagens dos Santos em frente à grade e periodicamente o cuidador abre a capela e as recolhe.
Então eu soube que a pilhagem é sempre muito grande.
Das capelinhas desprotegidas surgiram algumas valiosas imagens de Santos fabricadas na Europa nos séculos passados, e as chamadas “paulistinhas”, imagens muito antigas de Santos e Santas esculpidas em madeira, possivelmente a canivete, que alcançam preços fabulosos em lojas especializadas.
Para quem desejar ingressar neste agradável trabalho de busca e pesquisa, informo que o estado de São Paulo ainda oferece um prato cheio. É verdade que rareiam e em breve desaparecerão, porém ainda podem ser encontradas capelinhas, alminhas, cruzes de estrada, ermidas, oratórios, capelinhas em fazendas antigas, pequenos santuários, jubileus, e capitéis, que são oratórios, pequenas capelas onde se cultua a imagem de única Santa.
Ou mesmo nas grandes cidades.
De São Paulo cito o exemplo da Capela dos Aflitos, na Liberdade, ou do culto à Nossa Senhora da Cabeça, que já foram objeto de interesse deste blogue. Entretanto, ao encontrar uma capelinha abastecida com imagens e outros objetos religiosos, resista à natural tentação e somente tire fotografias e deixe orações.
Larry Ramos Coutinho ( junho de 2011)